Um texto um pouco mais complicado, mais sério e mais pungente hoje, tratando de uma questão bem importante: a maneira que personagens LGBT (ainda é essa a sigla?) aparecem em quadrinhos. A representação de minorias nas histórias em quadrinhos sempre foi um tanto problemática - é só notar o número de personagens que precisam ter um "negro" colado no nome, ou o número de heróis cujos poderes são "inspirados" em sua origem geográfica - mas acho que um dos casos mais complexos atualmente é dos personagens homossexuais: De forma geral, a grande maioria dos casos são apenas caricaturas inseridas meio que a força para dizer "olhem, nós somos progressivos".
Caso este do Northstar acima, da Tropa Alfa: um dos primeiros personagens assumidamente homossexuais na Marvel - e provavelmente o primeiro herói a sair do armário na editora, o fato é que Northstar cai em um erro comum de narrativa: ao invés de se lidar com a homossexualidade do personagem de forma real, ele se resume a gritar ao mundo "Eu sou gay" - e de tempos em tempos. Só para jogar sal na ferida tosca, a história em que o herói se assume - em Alpha Flight # 106 - o personagem está "morrendo de aids mutante". Sabe, por que gays tem aids.
Certo que esta história rolou em 1992, uma época mais restritiva neste sentido. Porém, Northstar "voltou atrás" várias vezes, e mesmo ignorando o constante "EU SOU GAY" do canadense, ele ainda é uma caricatura, facilmente sendo o membro mais afeminado da tropa Alfa - e passados 19 anos desde que ele saiu do armário, até hoje ele não esteve em NENHUM relacionamento. Ou seja, ele é gay, mas isso se resume a algo que ele afirma o tempo todo, sem que isso apareça.
Mas nem tudo são caricaturas no mundo dos quadrinhos, e as vezes personagens secundários são um meio melhor de lembrar os leitores de que, sim, gays existem, e não, eles não são imorais. Um caso muito bem escrito disto é a série Scott Pilgrim, do canadense Brian Lee O'Malley. temos dois personagens "do elenco principal" que são gays: o companheiro de quarto do protagonista, Wallace Wells, e o guitarrista da banda Sex Bob-omb, Stephen Stills. Enquanto Wallace já é assumido desde o primeiro capitulo, Stills se assume somente no último volume - para a surpresa total do leitor e de Scott. Mas ambos são personagens que vão além de "ah, ele é gay" .
Wallace em particular consegue simultaneamente cair dentro do esteriótipo de promiscuidade - é fácil perder a conta de com quantos caras ele fica ao longo da série - e manter um dos raros relacionamentos saudáveis em todo o elenco de Scott Pilgrim. Além disso, Wells é claramente o melhor amigo que Scott tem, e provavelmente uma das únicas pessoas que o aguenta.
Outro caso de destaque neste sentido era o editor Arnold Roth, nos quadrinhos da Marvel: amigo de infância do Capitão América, Roth se destaca da maioria dos personagens gays de HQs por sair completamente dos clichês. Ele não é um rapaz jovem e afeminado ou vaidoso: é um senhor calvo e gordo de meia idade. Também não é promíscuo, mantendo um relacionamento de 30 anos com o bibliotecário Michael (referido na década de 80 como seu "companheiro de quarto", embora o dialogo deixe claro o relacionamento). Infelizmente, Roth caiu em outra armadilha de personagens minoritários: serviu de exemplo para uma trama lidando com o preconceito, que terminou com o Barão Zemo matando o seu namorado.
E aí nós temos os casos em que, sim, temos personagens gays, não caricatos e que não são personagens de fundo - e que são pouquíssimos. São casos como o Hulkling e o Wiccano, de Jovens Vingadores - o relacionamento dos dois é bem escrito, bem desenvolvido, e nenhum dos dois cai em uma avalanche de clichês. Curiosamente, no começo de Jovens Vingadores, quando o Wiccano - então Asgardian - foi se assumir como herói, seus pais acharam que ele estava saindo do armário, e ao contrário de muitas backstories de HQs, ao invés de rejeitar o fato, a reação foi "bem, dã, era óbvio".
Outro caso forte - e ainda mais ousado - é de Runaways: a dupla Karolina Dean e Xavin, uma lésbica e uma transsexual. Quando o relacionamento das duas começa, Xavin - um skrull - apenas se finge de mulher para deixar a parceira mais "à vontade". Porém, com o tempo, o que ocorreu foi que Xavin se assumiu como mulher - tarefa fácil para um metamorfo como um Skrull. Infelizmente, outro caso trágico, e o relacionamento acabou quando Xavin foi levada pro espaço pela espécie da Karolina - tomando o lugar dela para que a namorada não sofresse. (o que só deixou as coisas piores).
E saindo do ambiente de Super-Heróis, temos o que eu considero o caso mais "você fez isso direito": Ethan Siegal, de Shortpacked! - o protagonista do webcomic, homossexual assumido, e de forma alguma caricato ou estereotipado. Ethan não é o único personagem gay em Shortpacked!, e a trama não gira apenas em torno dele ser gay: isso é um componente integral do personagem, mas não o único. E um aspecto de destaque: durante muito tempo, Ethan tinha um dos únicos, se não o único, relacionamento saudável em Shortpacked!, antes de terminar com o namorado por uma questão completamente estúpida. Ponto para David Willis nesse sentido.
É claro, gays não são a única minoria ferrada por texto ruim e por tentativas forçadas de inserção nas HQs e nos Webcomics - são só a mais pontual, frente a polêmica artificial criada por homofóbicos a respeito do PLC 122 e do kit anti-homofobia. Futuramente eu pretendo abordar as outras uma a uma, talvez começando pelos eternos mestres do kung-fu - afinal TODO personagem asiático em quadrinhos sabe artes marciais.
igualmente excelentes a abordagem e o tema!
ResponderExcluirParabéns e obrigado pela contribuição!
Mas tens mais!
ResponderExcluirApollo e Midnighter em Authority, o primeiro casal gay a beijar-se e a casar-se nos comics!
E mais recentemente a Batwoman!
;)
Abraço
Infelizmente (ou não) os quadrinhos tornou-se um gênero em que o combustível que faz a máquina "andar" são estereótipos/preoconceitos.
ResponderExcluirPersonagens musculosos são assim, heróis tem tal aparência, gênios, a história se passa dessa forma... enfim, há uma série de kits "prontos" na hora de criar e desenvolver.
Além disso, há o fator que é culminante: a profunda CARETICE desse setor na América. Depois de tudo que passaram na época do Código de Ética, é até compreensível ver o quanto eles (mercado de hqs) NÃO querem arriscar.
Nesse caso, vejo ainda um nicho: tá faltando alguém criar uma "espécie" de Mulher-Maravilha, seja na Marvel ou DC: um personagem que, tal qual a Amazona, possa abrir caminho nesse universo que, embora seja mais colorido e fantástico... é muito mais careta.
Ótimo texto! Vou concordar aqui com tudo sem hipocrisia. Sim, Jovens Vingadores é um exemplo perfeito de como retratar um relacionamento homossexual de forma natural e não esteriotipada, ponto para o Allan Heinberg. No caso do Estrela Polar (essa grande palhaçada da Marvel com ele e que sim, reflete outros tempos da editora) já foi resolvida, Scott Lobdell tentou consertar, foi impedido, mas nessa década Greg Pak fez um ÓTIMO trabalho com ele e sua vida amorosa nas duas últimas minisséries da Tropa Alfa e a escritora Leinil Francis Yu (AGORA) esta dando prosseguimento a historia do Estrela Polar ainda de forma tão bonita e digna quanto, na revista Atonishing X-men !!! Ponto pra MARVEL. Pelo menos o mais icônico e precursor gay dos quadrinhos está tendo justiça!Runaways é algo sem palavras... ótimo texto!
ResponderExcluirOs caras colocam a tarja de Gay nos personagens muitas vezes sem que isso influa em nada no tema geral da revista. Ser gay, judeu, nordestino, mutante ou extraterrestre deveria fazer parte da constituição do personagem e não um artifício pra venda através de polêmica fácil.
ResponderExcluirExcelente matéria, muito bom saber que existem mais pessoas que curtem quadrinhos e que não são homofóbicas. Como um gay que curte quadrinhos há muito tempo, fico feliz. Felicidade a todos, independente de sua orientação sexual.
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