quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

A iniciativa Hawkeye e as mulheres nos comics

Há muito tempo atrás, eu falei sobre a lamentável representação de homossexuais nas histórias em quadrinhos, em particular em revistas de super-heróis. Situação que melhorou muito pouco desde então, embora tenhamos tido alguns avanços significativos, e algumas medidas simbólicas, como fazer do lanterna verde da terra 2 "o lanterna verde gay".

Bem, agora, depois de quase dois meses de ócio, eu volto a falar de discriminação e representação nos comics com outro tema: mulheres. Tema que decidi trazer atona aqui (e reviver o blog no processo) em virtude da excelente Iniciativa Hawkeye, uma das maneiras mais hilárias de expor o quão ridículas e muitas vezes humilhantes são as poses absurdas tomadas por mulheres em hqs, redesenhando elas com o Gavião Arqueiro no lugar da contorcionista da vez.

Mas o problema vai mais fundo do que só a representação visual, então vamos por partes...


Falta de Identidade

Algumas dessas são versões diferentes da mesma Supergirl
Comecemos pelo problema mais "superficial" e mais óbvio: quantas super-heroínas são personagens em si? Grande parte das mulheres de destaque em HQs são ou começaram como uma versão feminina de outro personagem - e mais de um herói tem várias cópias femininas dele. Superman? Basta olhar as inúmeras Supergirls (quatro, da ultima vez que contei), junto com a Powergirl. Batman tem a Batgirl e a Batwoman - criada explicitamente como interesse romantico para o herói, em 1956 (para abafar acusações de que o homem morcego era gay, ironicamente, hoje ela é o personagem LGBT de maior destaque na DC). Mulher Gavião, Linda Strauss e Inza Nelson (Doctor Fate III e IV) são só mais alguns casos notáveis. Da "lista A" da editora mais antiga das HQs, a Detective Comics Comics - vulgo os membros "chave" da Liga da Justiça - a única não derivada de outro personagem é a Mulher Maravilha. 

É claro, esse não é o caso de todas as super-heroínas, mas uma grande parte se divide entre personagens de legado - vide a Questão atual, quarta detentora do título - ou cópias femininas de outros heróis, e o problema é mais notável na Marvel - ironicamente, a editora que tende a ser mais progressiva. Temos uma Capitã América (Sonho Americano, MC2), uma Mulher-de-Ferro (Resgate), ao menos duas cópias do Homem-Aranha (Mulher-Aranha II - a primeira tem identidade própria - e Garota-Aranha). 

Mas ela também exemplifica o segundo problema...
Roupa Própria?
Do meio disso tudo duas se salvam Jennifer Walters, a Mulher-Hulk - que nem se esforçaram com o nome, mas que hoje tem uma identidade muito forte desligada do primo - e Carol Danvers, a Miss Marvel, uma imitação tão descarada do Capitão Marvel que até a roupa era quase a mesma. Com o tempo ela se distanciou em termos de poderes e de design, ganhando uma vida própria como escritora, dramas pessoais e suplantando totalmente o original (hoje, a roupa e o título são dela). 

Não mais... e alguém detalhou um mamilo
A coisa fica ainda pior quando se olha os grupos feitos de imitações de outros heróis, onde temos uma predominância de mulheres e minorias - caso dos Jovens Vingadores, onde todo mundo é uma imitação, e é onde temos o mais notável casal gay da Marvel (Hulkling e Wiccano) e um dos mais notáveis casais multi-étnicos (Gaviã Arqueira e Patriota). Algumas super-heroínas da "lista C" podem não ser cópias de outro herói, mas copiam outra heroína, vide as cópias da Mulher Maravilha.

Para cada "Mulher Maravilha", temos 10 "Namoritas, Aqualass, Supergirls, Batgirls", e aparentadas. E é de se notar que a maioria das heroínas "autônomas" vêm de supergrupos. Não dá para dizer, por exemplo, que Ravena, Tempestade, Vampira ou Jean Grey sejam cópias de outros personagens - mas é notável que nenhuma dessas tenha surgido em uma revista delas - ou sequer que tenham uma revista própria. Na Marvel, a maior fonte de super-heroínas que não sejam legado ou parceiras de outro personagem está nos X-Men - justamente o grupo que nos anos 90 foi notável pelo excesso de personagens - enquanto na DC por muito tempo a fonte primária de heroínas não cópias era a Legião dos Super-heróis, com o mesmo problema.

Glory: a mulher maravilha de cabelo branco
(e em pose da playboy)
O boom das editoras no final dos anos 80 e inicio dos anos 90, com a ascensão de nomes como Extreme Studios, Wildstorm, Highbrow Entertainment, Top Cow Productions (todas do grupo Image), Dark Horse e Valiant resultou num aumento estarrecedor do número de super-heroínas nos mercado, com o surgimento de figuras como Lady Death, Glory, Witchblade, Cyblade, Avengeline e Fairchild. Todas sofriam de graus variados de derivação de outros personagens, indo de referências até cópias descaradas (Glory, em particular, era só uma imitação da Mulher Maravilha), e traziam a tona nosso segundo problema...


 Titilação acima de tudo.

Acho que a imagem ao lado seja um dos melhores exemplos do que vou abordar a seguir: temos aqui a primeira capa de "Vampirella", de 1969 (muito antes das garotas problemáticas do boom dos anos 90, e a "fonte" da Lady Death e da Avengeline). Embora o caso dela seja um caso extremo, o fato é que a representação padrão de mulheres nas HQs costuma ter como objetivo primário não a narrativa ou a demonstração de poder, mas sim a sensualidade e a titilação. 

Roupas coladas e decotas (as vezes simultaneamente), seios fartos, nádegas bem torneadas e pernas longilíneas são padrão entre super-heroínas e supervilãs igualmente, assim como poses absurdas que servem para colocar todos esses atributos em cena o máximo possível. 

Como demonstração disso, vou usar uma série de imagens da Iniciativa Hawkeye - a demonstração da mesma pose em um homem deve deixar claro o quão ridículas e muitas vezes submissas são as "manobras" de heroínas e vilãs.

Posando para a Maxim...
Não vejo qual o problema, é uma pose de ação, é poderosa, não é?

...Espera, o que diabos ele está fazendo?!

TEMAM MINHA VIRILHA! (sério, essa nem precisa da versão do Hawkeye)

Olhem como somos sexy!

É assim que a mutação dela é introduzida
Acho que isso são exemplos o bastante. Devo ressaltar que essas coisas não são exceções, mas sim a norma em muitas HQs...e a apelação sexual vai muito mais fundo do que só o artwork. O Boom dos anos 90 trouxe muitos casos extremos disso, como a seminua Lady Death, e a membro mais notável do Gen 13, Caitlin Fairchild - que além de ser uma Mulher-Hulk não verde, tinha a "memorável" habilidade de terminar quase todo arco de história com as roupas rasgadas - literalmente passando do que em geral era um maio hiper colado para quase nada no curso de algumas edições.

Ou o mais descarado caso de Amanda Waller, antes uma senhora gorda de meia idade, uma das poucas mulheres não atraentes do universo DC, que conseguia se impor como personagem sem precisar ter o físico de uma top model e os movimentos de uma stripper...


... e novo 52 é assim que ela tem sua primeira aparição: jovem, magra, empurrando o decote para a frente. O que era uma das únicas mulheres não "boazudas" da DC reduzida a mais uma, para como colocou o ex-editor chefe Dan Didio "focar no público masculino". Se "sutilmente" dizer que mulheres não gostosonas não tem lugar em HQs não é misoginia, eu não sei o que é.

Outro caso notável mais recente é o da Starfire/Estelar, dos Jovens Titãs (ou seja lá qual o nome da revista em que ela está hoje, Red Hood and the something-something acho). Estelar sempre foi altamente sexualizada, mas quando a DC decidiu resetar todos os seus títulos com o novo 52 ela sofre uma simplificação grotesca de personagem...

E ganhou uma espinha de borracha...
David Willis definiu bem o problema.
Antes uma figura alegre e emotiva, que celebrava o amor em todas as suas formas, incluindo o sexo, subitamente ela foi reinventada como uma figura apática e distante cujo único interesse era o "bom e velho tango horizontal". Obviamente, isso causou um grau considerável de polêmica - vinda em grande parte de quem conheceu a heroína através do desenho dos Jovens Titãs, e que merecidamente esperava algo minimamente similar a versão animada dela (e que fez mais sucesso que qualquer versão em quadrinhos da Tanagariana seminua). 

Para outro exemplo do foco excessivo em erotismo, é só ler o roteiro da primeira edição de All Star Batman e Robin (do eterno obcecado com prostitutas Frank Miller), que gasta mais tempo com instruções de como Jim Lee deve desenhar as nádegas da Vicki Vale (que passa as primeiras páginas desfilando de lingerie sem nenhum motivo) do que escrevendo a maldita história. E a repórter de Gotham nos leva ao terceiro problema...


Companheiras, Amantes e Sedutoras

Rápido, me digam alguma amiga da Lois Lane. Nenhuma? Que tal da Mary Jane? Algum detalhe da vida pessoal das personagens secundárias além do herói do título? Difícil, não? Algum interesse pessoal da Selina Kyle, a mulher gato, além de Batman e roubo de jóias (a julgar pela revista dela, sexo com o Batman após roubar jóias)? Embora algumas versões alternativas tenham mais profundidade do que isto, a grande maioria das personagens femininas em quadrinhos acabam se resumindo a um dos três papéis acima, especialmente quando são jovens.

É claro, é fácil dizer que isso é resultado de serem personagens secundárias... Mas enquanto o Comissário Gordon tem uma vida além de Batman e Bruce Wayne, o que se sabe da vida pessoal de Vicki Vale? Além da equipe do planeta diário, quem são os amigos da Lois Lane? Até em membros de super equipes essa discrepância é notável - quantas relações fora dos X-men ou dos vingadores tem a Tempestade - uma das mulheres de maior destaque na Marvel? Talvez ela não seja o melhor exemplo, mas é um personagem mais conhecido.

Peguemos um caso melhor, então: as multiplas mulheres no passado do Wolverine. Enquanto outras figuras do passado do baixinho enfezado tem longas vidas além da relação com o Logan, toda a existência de Yuriko (Lady Letal) e Silverfox parece girar em torno do X-men, vingador, X-force, X-qualquer coisa e rouba cenas padrão da casa das idéias. Não sabemos nada sobre elas além da relação com Logan. Enquanto isso, Dentes de Sabre tem um bocado de ligações além do Wolverine (notavelmente, o caso do Graydon Creed, o filho dele com a Mística).

The RuleUma boa maneira de se avaliar as questões de gênero no nível mais básico é o teste de Bechdel, introduzido pela cartunista americana Alison Bechdel na tirinha "Dykes to Watch For", em 1985. Para passar nesse teste básico, uma obra precisa ter: 1) Ao menos duas mulheres. 2) Elas tem que conversar uma com a outra. E 3) sobre algo além que não seja um homem. Não-surpreendentemente, não são muitas revistas de super-heróis que passam no teste. De fato, a maioria mal passa no primeiro item, e muitos dos que passam falham no segundo (em geral, quando passam do segundo o terceiro é garantido, o problema é chegar a tanto).

Uma heroína (e ex-vilã) que eu gosto muito, mas que falha espetacularmente em ter uma vida pessoal é a Soprano - como vilã, sempre definida pela relação com um vilão maior, e como anti-heroína e depois heroína nos Thunderbolts, nunca definida além do heroísmo e da relação com o Fundador dos thunderbolts, Barão Zemo. Isso parte de um problema essencial da industria de quadrinhos, e que também afetava a questão dos homossexuais: achar que "mulher" conta como um tipo de personagem. A mentalidade - não intencionalmente - é simples: "já é uma mulher, então tenho um personagem pronto".

É como a questão dos heróis negros, extremada no Luke Cage : "ele não precisa de um tema, ele já é um negro". Isso advém de um grau internalizado de sexismo por parte de autores homens, que os leva a ver mulheres como algo a parte, externado no discurso raivoso do ilustrador Tony Harris em novembro deste ano, afirmando que mulheres não são bem vindas nas convenções, não são nerds de verdade, e que seu único interesse é "chamar a atenção de homens inseguros para se sentirem bem". Resumindo: "Vocês não são como nós, são MULHERES, não vão nos entender, só querem nos seduzir".

Mulheres no refrigerador

E agora entramos no ultimo e mais violento problema, o que a escritora de quadrinhos Gail Simone chamou de "mulheres no refrigerador", a estranha tendência de personagens femininas serem mutiladas, perderem os poderes ou serem mortas como um dispositivo de trama. O apelido para esse tropo desagradável vem de uma cena infame dos quadrinhos do Lanterna Verde (ao lado), quando Kyle Rayner encontra o corpo mutilado da namorada enfiado na geladeira.

Embora heróis masculinos também sejam vítimas de violência como ferramente narrativa, como no caso do segundo Robin, Jason Todd, espancado até a morte pelo Coringa, isso não torna a situação menos desigual. Segundo o ex-editor do Comic Book Resources, John Bartol, no caso deles a tendência é retornar ao Status Quo - vide a morte e retorno de personagens como Super Homem, Bucky, Capitão América, Batman, Barry Allen (Flash II) e o próprio Jason Todd.

Enquanto esses personagens retornaram a vida, a maioria das mulheres "enfiadas no refrigerador" nunca retornam ao Status Quo. Quando Bruce Wayne ficou paraplégico, rapidamente ele encontrou maneiras de RESTAURAR UMA COLUNA QUEBRADA, mas quando Barbara Gordon esteve na mesma situação, ela só retornou a andar após o reboot do universo DC com o novo 52. Segundo Bartol, após as alterações, a maioria das personagens "nunca tem permitida, ao contrário do que ocorre com heróis masculinos, a oportunidade de retornar ao seu estado heroico original, e é aí que notamos uma diferença".

De acordo com Gail Simone, esse padrão é um dos maiores responsáveis pela falta de interesse de garotas por quadrinhos. "... a questão sempre foi: se você demolir a maioria das personagens que garotas gostam, então garotas não vão ler quadrinhos, simples assim", afirma. E não são raros os casos de "mulheres no refrigerador", sejam antigos ou recentes. Por raramente terem papéis principais, mulheres são "alvos fáceis" para gerar drama, mas nem as protagonistas escapam.

Vale notar como ela não teve sequer
chance de se defender.
Da morte de Gwen Stacy - um ponto alto na narrativa de super-heróis, até absurdos como a gravidez acelerada via estupro incestuoso da Miss Marvel (um dos pontos mais baixos da Marvel, e que hoje é estarrecedoramente tratado como piada), as duas mortes quase simultâneas da Vespa, o período sem poderes da Mulher Maravilha e o aleijamento da Batgirl (e implícito estupro), ou a morte da Big Barda (a mulher que é mais forte que o Super-homem!) na cozinha, o problema não é nos casos isolados - mas sim no fato de serem um padrão nocivo que atinge até personagens que deveriam ser ícones de afirmação, vide a infame "tentativa de estupro" em Buffy (não um caso de quadrinhos, mas notável mesmo assim). 

Mas vocês não precisam acreditar na minha opinião: pesquisem, leiam e vejam por si mesmos o quão entrelaçada na industria de quadrinhos está a misoginia, lamentavelmente. Um padrão que pode - e deve - ser mudado. Não podemos e nem deveríamos tentar fazer com que HQs sejam um clube do bolinha. 


*P.S.: Para quem afirma que homens também são objetificados em HQs, David Willis tem umas coisas pra te explicar...
Falsa equivalência.
P.P.S: 

Para quem diz que é um assunto irrelevante, e que mulheres não são o publico alvo,Willis mais uma vez - e há realmente de se questionar alguém que defende excluir 50% da população...