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segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O que não faz um Jacarandá...

Existem obras que são marcantes por motivos que são difíceis de explicar. Este é certamente o caso da surreal e chocante Jacarandá, de Shiriagari Kotobuki. A primeira vista, a premissa do mangá de 300 páginas de Kotobuki pode parecer cômica: Tokyo é destruída em uma única noite por um gigantesco... Jacarandá.

Mas desta premissa tola, Kotobuki cria um dos mais chocantes e expressivos quadrinhos de catástrofe. E sem nada da comédia que se esperaria de tal premissa. Do contrário, há um plenamente crível tom crescente de pânico que se apodera da sociedade ante a ameaça representada pela árvore - um tom que toma o lugar do fascínio antes exercido pela misteriosa muda surgida em meio ao asfalto.

Antecedendo o desastre, e em sua alvorada, Kotobuki aproveita para incluir críticas incisivas ao comportamento da mídia, ao culto a celebridades, o moralismo e a cultura de consumismo e indiferença do Japão contemporâneo. Porém, isso rapidamente dá lugar a uma obra tétrica e surreal quando a inocente muda que virou alvo dos olhares públicos começa a crescer e suas raízes passam a ameaçar as estruturas e as tubulações de gás.
O improvável implemento da destruição.

Contrariando a tradição em histórias de catástrofe, não há um “protagonista” ou personagem de ponto de vista em Jacarandá. O mais próximo de um personagem principal é a própria árvore, indiferente e inabalável em meio a destruição. O mangá não é sobre como pessoas, no individual, lidam com desastres: é sobre a tragédia em si. Não há uma narrativa tradicional em Jacarandá. Não existem atores, dramas humanos, conflitos ou soluções. Apenas a catástrofe improvável.

Enquanto as raízes e a árvore continuam a crescer rapidamente, a destruição aumenta sem fim. Em meio as chamas e os prédios arruinados, impera o tão enigmático arauto da destruição, o Jacarandá. Nada está a salvo, nenhum lugar é seguro. Há algo nesta trama, que remete a certas obras específicas de desastre - nenhuma das quais sobre desastres naturais: Jacarandá tem o mesmo tom opressivo e alarmante do primeiro Godzilla e do filme britânico Threads.

A arte de Kotobuki não poderia ser mais apropriada. Desviando dos clichês artisticos de mangás, seu traço é sujo, apressado e um tanto disforme - mas ao mesmo tempo tem uma beleza onírica e uma expressividade rara. Poucas páginas parecem “finalizadas”, lembrando mais rascunhos apressados e tomados pelo mesmo pânico que se apodera de Tókio. Quase metade das páginas são dedicadas a cenas de destruição infernais que remetem a outro desastre, este nada natural: não é difícil ver a similaridade entre a destruição causada pelo Jacarandá e a causada pelas bombas Fat Man e Little Boy, em Hiroshima e Nagasaki.

Jacarandá, no entanto, não é sobre os horrores da guerra nuclear: ele bebe do imaginário a respeito disso para construir sua visão tétrica do futuro. Nas palavras de Kotobuki, é uma história de recomeço (e uma “piada de 300 páginas” - não por ser “engraçada”, mas pelo absurdo). Uma salvação para o mundo ao custo da destruição da civilização. Um futuro macabro a ser evitado a qualquer custo, uma alegoria para uma “vingança de Gaia”, assim por dizer.

A obra pode ser lida em sites como Mangafox. Porém, eu recomendaria, se possível, adquirir uma cópia física - é uma obra excelente e que não depende de diálogos para ser compreendida. E da mesma maneira que Kotobuki, peço desculpas ao Jacarandá, essa árvore tão bela e inofensiva (cujas lindas flores representam o recomeço ao final de Jacarandá).

É plenamente compreensível que se discorde da minha interpretação de Jacarandá. Não há uma única análise correta e esta é a minha leitura. Então encerro com um convite ao debate, para quem aceitar o desafio de ler: para você, do que se trata o tão surreal mangá de Shiriagari Kotobuki?


quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O "Tio Sacana" dos Mangás, Go Nagai.

Nagai e sua criação mais famosa: MAZINGER Z. 
Todo fã de quadrinhos japoneses que se preze sabe quem foi Ozamu Tezuka, o “pai” dos quadrinhos e desenhos japoneses. Criador de obras memoráveis como A Princesa e o Cavaleiro, Astro Boy, Phoenix, Kimba o Leão Branco e Blackjack, Tezuka certamente merece o respeito que tem - e não só por ter fundado a indústria de quadrinhos japonesa como a conhecemos.


Mas outro nome extremamente importante para os quadrinhos nipônicos permanece desconhecido fora do Japão. O homem que é o Jack Kirby para o Joe Shuster de Tezuka. O homem que ousou ir onde os quadrinhos japoneses nunca iam. Que fazia o impossível e o implausível darem certo. Que acumulou mais obras terríveis e mais obras primas que a maioria dos autores fizeram em toda sua vida. O homem que fundou (e depois escrachou) gêneros inteiros: Go Nagai.


E sua obra prima: Devilman
Eu já falei de Go Nagai uma vez antes, quando escrevi sobre seu Magnum Opus, Devilman. No entanto, a importância de Go Nagai e a amplitude de sua obra vão muito além de Devilman. A melhor maneira de defini-lo é em comparação com Tezuka: se Tezuka é o “pai do mangá”, Nagai é o tio que dá os presentes que o pai não gosta.


Ou seja: enquanto Tezuka e companhia criaram o mangá como forma, Nagai foi quem deu os elementos de violência e erotismo que tantas vezes marcaram a indústria. Sem o "tio Go" é possível que não teríamos a onda de OVAs ultra violentos dos anos 80 (cujos autores foram confessamente influenciados pelo gordinho bonachão); não teríamos a abundância de fanservice que hoje domina a indústria (e talvez isso fosse algo positivo...); e não teríamos vários dos gêneros mais populares da animação e dos quadrinhos japoneses.

Violence Jack: possivelmente o Mangá mais violento
da História. Certamente o mais violento de sua
carreira.


O começo de carreira na comédia.


Jun, a Virgem de Ferro:
uma pornochanchada barata.
Nagai é um artista único, capaz de ampliar os limites da forma de maneiras nunca antes pensadas, e de baixar o nível da forma, também de maneiras nunca antes pensadas.Para cada obra genial como o supracitado Devilman, Mazinger Z e o altamente experimental X Bomber, há uma bizarrice semi-erótica como Iron Virgin Jun, Hanappe Bazooka e Dimension Hunter Fandora ou um shlockfest como Violence Jack e Juushin Lyger (embora o nível dos dois seja completamente diferente, e a violência de Lyger seja primariamente no anime), e tudo isso se mesclando a comédias como Oira Sukeban (delinquente travesti) e  Dororon Enma-kun (essa posteriormente reescrita como horror puro em Kikõshi Enma).


Nascido Kiyoshi Nagai em 1945, a paixão pela polêmica e a transgressão deu as caras no início da carreira, quando ainda era conhecido meramente como um autor de comédias baratas como Pansy-Chan. Em 1968, Nagai ainda não tinha nenhuma série em seu nome, quando foi convidado pela Shueisha para ser parte do elenco da sua primeira revista de quadrinhos: nada menos que a Shonen Jump. Sim: ele foi um dos primeiros nomes do que é hoje a principal revista de quadrinhos para garotos no Japão.


O controverso Harenchi Gakuen
Tendo que criar uma série para a nova revista, a resposta veio na forma de Harenchi Gakuen (Escola Sem-Vergonha, ou Escola Escandalosa), o primeiro mangá erótico, o primeiro Hentai, e o primeiro mangá a causar um “escândalo moral” no Japão. A meta de Nagai não era o eroticismo, mas sim abordar o grau de vergonha que os japoneses tinham ao lidar com sexualidade. Em 1972, Nagai foi forçado a encerrar Harenchi Gakuen, sob o risco de ser preso por atentar contra a moral pública (sim, em 1972, era possível ser preso por escrever algo “imoral”). Sua maneira de lidar com as acusações de imoraidade foi encerrar o mangá com uma invasão da associação Pais e Professores, membros do governo e “guardiões da moral” à escola, que se encerrava com todos os personagens sendo mortos.


Leão Negro: palavras desafiam descrever esse
misto de história de samurais, FC e sabe-se-lá o quê. 


Mudando a cena dos mangás


Cutie Honey: a primeira
heroína de um mangá
para garotos.
Um eterno precursor, Nagai explorou os limites do simbolismo religioso em Maou Dante, e aprofundou e valorizou esse recurso em Devilman, e em seguida o jogou no lixo da história com Violence Jack. Praticamente criou o Mahou Shoujo como gênero “universal” em 1974 com Cutie Honey (Honey foi a primeira mulher a protagonizar um quadrinho para rapazes, e a primeira história do gênero a se destinar a um publico mais amplo do que “meninas entre os 8 e 12 anos”) e o ridicularizou com Kekko Kamen (que satirizava super heróis, garotas mágicas, romances colegiais, e tudo mais). Fez o gênero fracassado dos Super Robôs dar certo com Mazinger Z (um quadrinho que escreveu para “aliviar o stress), escarneceu as histórias de crime com Abashiri-Ikka (título motivado em parte pelo pânico moral contra Harenchi Gakuen), e deu uma roupagem contemporânea para o folclore japonês com Susano-Oh e Shutendoji.



Majokko Tickle: uma "garota mágica"
tradicional.
Não que tudo que fez tenha sido “transgressor” ou “inovador”. Enquanto outros autores se contentam em serem conhecidos por sua maestria de um gênero, Nagai quis tudo. Dominou a forma das garotas mágicas com Majokko Tickle. Muito de sua obra foi composta por séries semi formulaicas de robôs gigantes, como Gakeen, Grendizer e Koutetsu Jeeg. Porém mesmo onde Nagai não se arriscava, ele demonstrou maestria da forma e do gênero.  

Nagai até chegou a escrever alguns títulos especificamente para o mercado ocidental, releituras de suas obras mais famosas para o gosto "americano". Nenhuma dessas ideias fez muito sucesso, a mais bem sucedida sendo Mazinger USA, que serviu de base para Z Mazinger (uma das muitas releituras do clássico). Também colaborou no roteiro da sequência de Vingador Tóxico (da lendária Troma Films), onde fez uma ponta - o filme foi um desastre...






Gaiking, a Obra que a Toei roubou. 
Em 1970, visando manter os direitos autorais sobre sua obra, Nagai e o irmão fundam a Dynamic Productions, um dos primeiros estúdios autorais do Japão. A primeira obra alheia publicada diretamente com o selo da Dynamic foi Gakuen Bangaichi, do autor de Getter Robo, de Ken Ishikawa. Sem gráfica própria, o estúdio de Nagai intermediava a produção de quadrinhos com as editoras, e garantia o retorno devido aos artistas. Da mesma maneira, a empresa intermediou a produção de animações junto a Toei até 1976, quando a gigante de animação roubou um projeto de Nagai, a série Daikyu Maryu Gaiking, e a creditou a Akio Sugino, para evitar pagar royalties. Nagai cessou todas as colaborações com a Toei e travou uma batalha legal por mais de dez anos. Ao fim das contas Nagai foi devidamente indenizado, e a Toei teve que pagar royalties novamente com a releitura de Gaiking em 2005.


Dimension Hunter Fandora: um dentre muitos Sci-fis genéricos
dos anos 80. 


Expandindo os limites da forma


Divina Comédia: um dos projetos
mais "artísticos" de Nagai. 
Embora seja indiscutivelmente o rei da parte “trash” dos quadrinhos japoneses, Nagai abundou em projetos artísticos. Escreveu mangás históricos sobre o período Sengoku; publicou uma série histórica, Sharaku, sobre a transição do período Edo para o período Meiji (final do século XIX) pelos olhos de uma jornalista; Escreveu uma obra breve sobre Clara Schumann e Johannes Brahms; escreveu e ilustrou uma adaptação completa da Divina Comédia, de Dante Alighieri; Isso tudo enquanto produzia dezenas de séries de animação e quadrinhos em todos os gêneros. Parte da liberdade para tanto veio justamente de “ser seu próprio patrão”.




A experimentação de Nagai foi muito além dos mangás e animes. Nagai também experimentou com os limites da produção em TV e impresso; seu X-Bomber usou o “supermarionation” de Gerry Anderson (Thunderbirds) para uma série de super robôs - o projeto não partiu de Nagai, mas o resultado tem muito do seu toque. Antes disso, Aztecaser misturou tokusatsu com animação para criar um super herói lutador de luta livre. O herói de Jushin Liger inspirou um lutador de luta-livre - que por sua vez levou Nagai a produzir um filme onde o lutador vira o personagem que encarna no ringue (é um filme muito estranho).

Mazinger Angels. Sem comentários. 
Em mais de quarenta anos de carreira, Nagai continua fazendo o que faz de melhor. Ainda hoje ele trabalha em mais sequências de Mazinger e Devilman, mais obras históricas e releituras malucas da mitologia, e mais comédias e séries de ação com uma pitada (ou um pote inteiro) de erotismo (como Mazinger Angels, uma releitura de Mazinger Z misturada com... AS PANTERAS?).

Claro, isso é um recorte muito superficial da carreira do "tio sacana" dos Mangás, mas acho que com esse breve recorte já se tem uma boa lista de leitura para acompanhar o trabalho dele, não? Go Nagai é de longe um dos mais versáteis criadores na indústria japonesa de entretenimento. É pouco provável que não haja alguma coisa na sua filmografia e bibliografia que não seja do agrado de qualquer um. Fica a dica.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Crítica Literária : Star Maker

A busca pelo sentido do universo, o propósito da consciência, e o destino final da vida: esses são os temas centrais de Star Maker, de Olaf Stapledon. Publicada em 1937, a introdução da obra tenta avisar o mundo do perigo que se aproxima, da expansão do racismo, da intolerância e do autoritarismo, ameaças claras do seu tempo.

Narrada em primeira pessoa, a maior falha de Star Maker é a total ausência de diálogos; todas as conversas são implícitas, o que é de certa maneira compreensível, dado que a trama inteira é a viagem psíquica do narrador através da história do universo, relatando o desenvolvimento histórico, espiritual e mental de várias 'humanidades', culminando na ascenção do narrador à mente cósmica, uma entidade composta pelo gestalt de todas as mentes ascendidas do universo, e seu encontro com o criador, o Star Maker do título.

Duas coisas se destacam no livro : a primeira são os detalhes dados a cada 'humanidade' encontrada pelo narrador, começando com os estranhos "sapos-pombos-sei-lá-o-que" da "outra Terra", até arvores sencientes, "répteis" vivendo na superfície de estrelas, e nebulosas semi-conscientes. Em algumas dessas "humanidades", nosso narrador encontra compania em sua viagem e aptoteose. Em outras, a sua extinção ou degenaração chega antes que elas atinjam o intelecto necessário para manter contato telepático com outras espécies, e assim juntarem-se à proto mente cósmica.

A outra é triste visão do universo : todas as espécies estão fadadas a degeneração, seja antes de poderem juntar-se a mente cósmica, ou quando chegarem a tal nível que a manutenção de sua existência será impossível. E a mente cósmica tem o pior destino de todos : sofrendo uma morte lenta e dolorosa conforme o universo se torna menos inteligente, juntamente com o horror de saber que o criador não tem qualquer amor pelo universo, e que contáveis outros universos estão presos em um cíclo sem fim de sofrimento igual ao seu.

Ao mesmo tempo que é um livro belíssimo, Star Maker talvez seja a maior obra de "horror cósmico", colocando H.P. Lovecraft no chinelo. Se a idéia de um criador incapaz de sentir qualquer coisa pela humanidade é desconcertante, um criador que vê o universo como uma obra de arte falhada, e cuja emoção mais pervasiva é a crueldade é a própria essência dos pesadelos.

Numa escala de zero a dez, Stapledon merece definitivamente um dez.