quinta-feira, 5 de maio de 2016

Culto à personalidade e ficção científica: a dualidade Optimus e Megatron

Algum tempo atrás eu fiz um artigo sobre o poder da representação icônica e da imagem idealizada como força positiva no personagem de Optimus Prime, na maneira como ele é retratado nos quadrinhos da IDW. O assunto hoje é o mesmo -  mas na maneira como essa idealização e consequente culto a personalidade pode - e muitas vezes é - uma força negativa.

Essa força é uma velha conhecida de ditaduras, cultos, milícias e “megachurches”: a noção do “grande líder” como alguém “maior que a vida”, um homem entre os homens, um profeta ungido pelos deuses. São maneiras eficazes de catalisar a força das multidões ao redor do “herói”, estabelecendo alguém ao redor do qual as massas se congregarem - e a quem obedecer. Assim, ao mesmo tempo que essa devoção e essa imagem mítica pode exaltar seus seguidores, ela também pode levar a população a atos que não cometeriam normalmente, contanto que pensem que esses atos são em nome do “líder” ou do “messias”.



Donald Trump: um dos casos mais recentes - e preocupantes.
As grandes ditaduras do século XX se basearam nesse culto a imagem pessoal: Hitler como “o Führer”. Mao Zhedong era “o grande líder”. Stalin sistematizou o culto a si próprio e a Lenin na União Soviética. A dinastia Kim da Coréia do Norte se estabeleceu como pseudo divindades. No Turcomenistão, em 2002, o presidente Saparmyrat Nyýazov se deu o título Turkmenbasi, o “pai dos turcomenos” para estabelecer uma ligação simbólica de paternidade com seu povo - repetindo o discurso do sultão Ataturk, o “pai dos turcos”. Muamar al Ghadaffi,  por sua vez, gerenciava sua imagem e seu nome com afinco. Hoje, os senhores da guerra de estados falidos como Afeganistão e Somália vivem de títulos grandiosos ou misteriosos para criar uma aura de misticismo e temor ao redor de si - e da mesma maneira, Abu Baqr Al-Baghdadi se deu o título de Califa, para dar legitimidade a sua tirania, fazendo dele “mais do que um homem comum” e “o sucessor do profeta”.

Da mesma maneira, as monarquias e bandos de guerra vivem disso - de estabelecer seus regentes como dignos de adoração por um direito “inato”, um mandado divino que colocasse os reis acima dos homens comuns. Os imperadores do Japão e os Faraós do Egito se sustentavam na noção de que descendiam diretamente dos deuses. Na China, incontáveis vidas foram perdidas em nome da posse do Mandato dos Céus, o símbolo do poder imperial. Ghenghis Khan, por sua vez, abandonou o nome Temuchin para ser o “Grande Líder” ao redor do qual as tribos mongóis se unificaram.  

A política contemporânea não tem carência dessas figuras, sejam na extrema-direita, como o verborrágico Donald Trump, o político francês Jean-Marie Le Pen ou o "mito" Jair Messias Bolsonaro, ambos sustentados por um misto de carisma pessoal e discurso de ódio, ou na esquerda, como é o caso do ex-presidente Luís Inácio "Lula" da Silva, infinitamente mais popular e adorado que o seu partido.

Tá, mas e a ficção, onde entra?

O Imperador Deus, de Warhammer 40,000:
Um cadáver em um trono de ouro
Desnecessário dizer que o assunto foi tópico farto para a ficção e a mitologia. Arthur Pendragon era o legítimo regente da Inglaterra e de Camelot não por conquista, apoio ou competência, mas por profecia. Na série Duna, de Frank Herbert, Paul Atreides rapidamente e involuntariamente cria um culto fanático a sua pessoa, vista como o Messias,  o Kwisatz Haderach. Sua irmã, Alia, tenta gerar um culto a si mesma com títulos pomposos como Madinato, e seu filho, Leto II, é reverenciado como o “imperador deus”. Em Harry Potter, Tom Riddle demonstra entender do poder que essa imagem tem, abandonando seu nome “mundano” em favor de um mais “poderoso”: Voldemort. Enquanto outros são adorados, Voldemort gera poder ao ser temido, e seu status como “aquele que não deve ser nomeado” faz dele algo “maior que a vida”. O indivíduo não importa - apenas o mito. O mesmo culto visto em Duna dá as caras no wargame Warhammer 40,000 e o Imperium, um estado tirânico devotado ao “Imperador Deus” e sua grande cruzada. Enquanto isso, o verdadeiro imperador-deus definha entre a vida e a morte, vendo a humanidade trilhar o caminho oposto ao que almejava.

Nos quadrinhos não é diferente. Bruce Wayne construiu um mito ao redor de si como o Batman, para controlar Gotham pelo medo. O lado positivo disso já foi explorado em obras como Dark Knight Returns e Batman Incorporated - em que a figura do Batman inspira cidadãos comuns - enquanto o lado negativo foi visto no filme The Dark Knight e seus vigilantes inspirados pelo morcego, quando estes são apenas mais uma fonte de crimes em Gotham. Steve Rogers desaparece ante a figura do Capitão América - figura que já serviu para canalizar o que há de pior no patriotismo americano. Os vilões Apocalipse e Darkseid, por sua vez, são adorados como deuses - merecidamente, no caso de Darkseid.

O Grão Diretor.
Os grupos de terroristas de quadrinhos se centram no poder do culto a  personalidade. Seus líderes tem nomes e discursos pomposos como “Madame Hidra”, “O Grão Diretor” e “Serpente Suprema”, assim como seus equivalentes reais na KKK tem “magos supremos” e “grão ciclopes”: esses líderes estão além dos meros peões da organização. São títulos que permitem criar uma imagem de um “líder eterno”, imortal e intocável, destinado ao comando. São mitos, “heróis” e profetas.

E a esta altura você deve estar se perguntando o que isto tem a ver com Optimus Prime. No texto citado no primeiro parágrafo,  eu falei sobre como esse ícone era inspirador - e como ia além da figura de Orion Pax, que morria simbolicamente para que Optimus Prime existisse. Agora, assim como os quadrinhos da IDW o fazem, trato dos aspectos negativos dessa imagem. Em Cybertron, isso se dá primariamente na forma de Primus Apotheosis, uma psicose que afeta 2% de todos os cibertronianos: uma obsessão em ser Optimus Prime.

Relevante: o título do arco de estória remete
à revista anterior, All Hail Megatron
Mas agora, após os eventos de Combiner Wars, Optimus tem que lidar com um aspecto pior: ser visto e adorado como uma espécie de messias destinado a levar a raça cibertroniana a uma nova Era de Ouro. Assim como Paul Atreides, Prime está diante de uma encruzilhada em que todos os caminhos levam a uma guerra santa em seu nome - e suas tentativas de moldar seus seguidores em uma força para o bem podem resultar em desastre. O que virá disso, segue nas páginas da revista antes chamada Robots in Disguise, agora Transformers Vol. 2, e deve causar impacto nas outras publicações, e já começou a causar choque: a anexação da Terra como uma colônia cybertroniana, ironicamente para evitar uma invasão cybertroniana.

É um dilema entre a preservação dos seus ideais (definidos pela expressão Liberdade é o direito de todos os seres sencientes), os sacrifícios exigidos "em nome da paz" - que neste caso, como consequência da guerra, ameaçam deflagrar outra guerra afetando quem nada tem a ver com o conflito - e as expectativas sociais quanto ao mesmo heroísmo que tanto serviu como algo positivo anteriormente: Optimus é "o Prime Vivo" e certas coisas são esperadas dele por conta disso. E da mesma maneira que ocorre com tantos outros personagens... pessoas estão dispostas a dar suas vidas por conta desa idolatria.
Na revista paralela à Transformers, More than Meets the Eye, Megatron tem lidado à sua maneira com os efeitos do culto que se desenvolveu em torno dele. Como eu já havia coberto anteriormente, Megatron é um exemplo perfeito de como o radicalismo pode distorcer um ideal e levar a um fanatismo violento. O melhor exemplo do poder corruptor que a figura do fundador do movimento Decepticon é sem dúvidas o líder da "Divisão de Justiça Decepticon", Tarn - que após a "conversão" do seu "herói" ,se dedica à morte do seu outrora ídolo - justamente para evitar que o "ideal" e o "mito" se corrompam.

Assim como bons líderes e símbolos podem exaltar seus liderados, levando-os a feitos maiores do que conseguiriam normalmente, também podem ser uma força destrutiva inigualável. Boa retórica, um discurso convincente e carisma podem levar as pessoas a atos que não teriam a disposição - quer tivessem o ímpeto para isso ou não - com consequências desastrosas. Assim como podem justificar atos hediondos (como as medidas de cerceamento de liberdades em países árabes ou em Israel) sob o argumento de que "são necessárias para combater o inimigo".

Essa questão é muito bem frisada repetidas vezes ao longo do texto das duas revistas em questão, mas poucas vezes com tanta força quanto em More than Meets the Eye #52 (The Dying of the Light part 3: Your Fierce Tears), com o seguinte discurso de Tarn para seu "herói":

"Você quer falar de vidas desperdiçadas? E quanto à todas as pessoas que morreram seguindo suas ordens? Os limpadores de estrada e os transportadores. Os mineiros! Todos aqueles que morreram à serviço de um futuro que você prometeu trazer? Eles desperdiçaram suas vidas? Eu desperdicei a minha? Olhe ao seu redor, cada flor representa uma vida que você deu fim - uma morte pela qual tem responsabilidade plena. Você pensa que são todas de Autobots?"

Resumindo a questão dado que o texto já está bem longo, grandes líderes, messias e "heróis" são uma influência perigosa: assim como podem ser uma força pelo bem geral, podem ser o impulso que falta para que atrocidades sejam cometidas. Muitas vezes, são as duas coisas ao mesmo tempo. E a ficção científica sabe muito bem como lidar com isso, por mais que tenha uma estranha paixão por esse tipo de personagem, por vezes uma paixão acrítica.

 

Um comentário:

  1. Seu texto realmente abriu meus olhos e me fez pensar sobre isso . É bom ver assuntos assim serem discutidos na ficção popular .

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