segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Velhos problemas: O principio de Smurfette.

A discussão aqui é sobre um antigo problema, que ainda existe com uma intensidade muito menor do que nos velhos tempos, mas merece discussão.

O problema de como personagens femininas são representadas é um assunto bem complexo. Aliado a ele, está a discussão de o quanto mulheres são representadas. Essa questão é particularmente notável nas animações comerciais para rapazes, que, quando muito, contam com um punhado de personagens femininas (normalmente uma pros vilões e uma pros heróis).


Essencialmente, durante muito tempo se manteve uma atitude de que, ao incluir uma personagem feminina, o trabalho estava feito: não tinha motivo para colocar mais nenhuma. Isso tem muito a ver com a outrificação do feminino. “Mulher” contaria como um “tipo” de personagem e não tem porque ter “dois personagens iguais”*.  


O princípio de Smurfette


O principio não leva seu nome sem motivo.
Esse fator foi apelidado em 1991 de O Princípio de Smurfettepela ensaísta do New York Times, Katha Pollit. Segundo Pollit, muitos dos desenhos à época eram ou plenamente masculinos (como Garfield, onde a única personagem feminina recorrente era quaternária) ou se centravam nesse princípio: um grupo de personagens masculinos acentuado por uma única mulher estereotipada. O auge dessa tendência era, obviamente, os Smurfs - onde a única característica da Smurfette era “a mulher” - as duas mulheres posteriores nos Smurfs, Sassette e Nanny Smurf, por sua vez, representavam “a menina” e “a vovozinha”.


A mensagem era clara: rapazes são a norma, garotas são a anomalia. Essas personagens femininas definiam-se somente por sua “feminilidade”, em grande parte dos casos como objeto sexual. April O’Neil era o objeto de desejo para as tartarugas ninja. A Baronesa era a sedutora e tentadora. Mais recentemente, Wanda, em Os Padrinhos Mágicos, fazia o papel da “patroa reclamona”. He-Man contava com um “impressionante” total de três personagens femininas (Teela, A Encantadora e Evil-lynn.- e antes do desenho Teela e a Encantadora eram a mesma pessoa).  
Crystal Kane e o Orangutango
Crystal Kane: a unica mulher recorrente em Centurions,
servindo apenas como operadora de sistemas. 
Vários casos são gritantes: No esquecido Centurions, a única mulher recorrente não participava da ação (e não apareceu na linha de brinquedos). Na brevíssima Inhumanoids, a única personagem feminina no elenco central existia para atrair a atenção dos heróis e servir como uma “donzela indefesa” no piloto (não tão indefesa: ela é transformada em um monstro pelo vilão De-Compose, mas boa parte do conflito no episódio gira em torno de como devolve-la ao normal). Na breve e fulgaz Visionaires, cada facção contava com uma personagem feminina - que não fez parte da linha de brinquedos.


Teen Titans
Uma formação mais equilibrada.
Por outro lado, temos várias séries muito positivas neste aspecto. Caverna do Dragão contava com duas em um grupo de seis, e dava um passo a mais fazendo uma delas ser negra. O já antigo desenho dos Jovens Titãs equilibrava as contas com duas de cinco. As duas séries animadas dos X-Men contavam com quatro de início, com mais conforme a série progrediu. A genial The Misadventures of Flapjack tem um elenco restrito (e uma carência notável de personagens secundárias femininas) mas baseou grande parte do seu humor no exagero de clichês sobre gêneros, com a excessivamente maternal Bubbie e o “machão porco” K’nuckles.  

Há de se ressaltar que esse problema é mais grave em grupos maiores (como os G.I. Joe, ou os Smurfs), onde a escassez de personagens femininas é mais gritante. E é negligenciável em obras com um grupo muito pequeno de personagens principais (onde o que é debatível são os personagens secundários), como por exemplo Adventure Time - com apenas dois.


SECRETÁRIA
Em quadrinhos não era muito diferente: Os X-Men contavam originalmente apenas com Jean Gray, alvo dos desejos e paixões de todos os outros X-Men. Os Vingadores tinham apenas a Vespa, que na época era pouco mais do que uma socialite com super poderes. A Irmandade dos Mutantes do Mal contava somente com a Feiticeira Escarlate - que depois se tornou a única mulher entre nove membros da segunda “grande” formação dos Vingadores. Mística era originalmente uma vilã da Miss Marvel. A formação original da Liga da Justiça possuía a Mulher Maravilha (que na anterior Sociedade da Justiça servia como secretária). Um dos mais infames emaranhados de continuidade da DC veio com a “garota obrigatória” dos Jovens Titãs, Wonder Girl - parte da equipe só porque “tinha que ter uma garota”. O problema? Wonder Girl era, até então, literalmente uma versão mais jovem da Mulher Maravilha e só depois de cinco anos as personagens foram separadas com a adolescente sendo renomeada Donna Troy.



Melhorando com o tempo



Embora as coisas estejam melhorando - e muito, faço questão de frisar - o Princípio de Smurfette continua presente em muitas séries e filmes contemporâneos. Em 1985, a cartunista americana Alison Bechdel propôs em sua tira Dykes to Watch Out For (traduzido aproximadamente, “Sapatas para se ficar de olho”) um teste simples para filmes: eles deveriam ter 1) Duas personagens femininas 2) Que conversam uma com a outra 3) Sobre algo que não seja um homem*.

Segundo o site Bechdeltest.com, pouco mais de metade dos filmes passam nos três itens do teste. O teste não é garantia de uma obra “feminista” ou com tenha personagens femininas fortes. Apenas de interações entre mulheres não definidas por sua relação com um homem. E é possível que uma obra que “sofra” do Princípio de Smurfette tenha personagens femininas fortes e sua narrativa não reduza a mulher a uma “coisa” e um “outro”.
Viúva Negra: a uma mulher na formação inicial
dos vingadores no Cinema. 
Mesmo quando os personagens são mais desenvolvidos, esse tropo as vezes continua em ação. Na primeira temporada de Avengers: Earth’s Mightiest Heroes, os vingadores contam com uma única personagem feminina: a Vespa. Na série que a sucedeu, o mesmo se repete com a Viúva Negra, desempenhando esse papel na formação dos Vingadores no cinema. Um dos casos mais descarados desse fenômeno se deu com a série Zyuden Sentai Kyoryuger, onde a presença de apenas uma mulher na equipe foi justificada com a alegação de que “não seria crível duas mulheres derrotarem um dinossauro” (quatro homens fazerem isso separadamente? totalmente crível). Posteriormente uma segunda mulher foi adicionada ao esquadrão.

Esse tipo de problema não se manifesta somente na forma de ausência de múltiplas mulheres recorrentes, mas também na falta de mulheres como um todo. Um dos casos mais gritantes foi a primeira temporada da série Batman: The Brave and The Bold. Ao longo de seus 26 episódios, apenas duas personagens femininas apareceram, com pouquíssimo tempo de cena. As temporadas seguintes foram melhores neste aspecto, em respostas a pressão dos fãs (incluindo um hilário episódio centrado nas Aves de Rapina).

Em 386 minutos da trilogia original, falas de
mulheres que não sejam a Leia somam apenas 63 segundos
Esse tropo não é sinal da ausência de personagens femininas complexas ou fortes. Leia Organa, por exemplo, é talvez um dos casos mais claros de ‘Smurfette”do cinema. Ela é uma das mais renomadas personagens femininas de todos os tempos (para muitos fãs, pelos motivos errados). Da mesma maneira, a falta de personagens femininas recorrentes não significa que algo seja ruim - há uma diferença entre ter algo que pode ser problematizado e ser condenável. Kyoryuger é condenável em sua justificativa pífia; Smurfs é condenável pelo determinismo e subtexto machista por trás da Smurfette; Transformers é condenável pelo conjunto da obra de Simon Furman. O resto é passível de discussão e crítica, não de condenação.

Pior na indústria de brinquedos
Figura rejeitada de G.I. Joe:
"mulheres não vendem".
Como muitos problemas de representatividade, a responsabilidade por isso não é só dos autores. Muitas das obras que sofrem de uma profunda carência de personagens femininas são comerciais e pressões por parte de executivos, nem sempre sintonizados com o que o público quer, agravam o problema. Um exemplo vem da Hasbro. No auge de G.I. Joe , A Real American Hero, os designers propuseram adicionar uma mulher negra às fileiras dos Joes. Embora as personagens femininas estivessem entre as mais populares e as que mais vendiam, a personagem foi barrada pela empresa “porque mulheres não vendem”. Ela sequer recebeu um nome.

Linhas de brinquedos estão entre as que sofrem deste problema com maior gravidade**. Das três linhas já cobertas no blog todas tem suas “Smurfettes”. As de “Constraction” da LEGO, Bionicle e Hero Factory, têm equipes heróicas e em todas as coleções contam com uma única personagem feminina, com a exceção do ano 3 de Hero Factory, com zero personagens femininas. O problema supracitado com Brave and the Bold tem suas raízes na indústria de brinquedos: como o desenho existia para promover os bonecos, e a coleção não tinha personagens femininas, deu no que deu.


A lista é bem longa nesse sentido. As parcas mulheres a terem algum destaque em Saint Seiya tiveram figuras apenas nas linhas mais recentes (Myth Cloth e Myth Cloth EX), quase sempre como exclusivos do site Tamashii Web, com uma exceção na linha original. Em linhas dos anos 80 e 90 as chances são de que citando uma linha ao acaso, ela tenha apenas uma personagem feminina. Power Lords só tinha uma. A péssima linha de Dungeons and Dragons idem.


Arcee: isolada, hiper sexualizada, e reduzida ou a uma
'mulher histérica' (nas mãos de Furman) ou a uma secretária
(em Headmasters). 
Uma das franquias que sofre com isso de forma mais perceptível é Transformers, com uma ausência quase total de personagens femininas, ressaltada quando lembram de incluir alguma. Na série original, além das “Autobots Fêmeas” de um episódio temos apenas Arcee - e a inclusão dela veio ao custo do desaparecimento quase total da humana Carly. A linha de brinquedos não é muito melhor e é difícil encontrar alguma figura feminina que não seja uma Arcee, e a original levou 18 anos para ter um boneco, ou uma Blackarachnia, de Beast Wars. Mas nada na franquia conseguiu ser pior nesse aspecto do que os quadrinhos antes de 2013 (mais sobre isso aqui), que graças a Simon Furman literalmente tratavam o feminino como aberração. A IDW tem tido um tratamento mais positivo - o que atraiu a ira de alguns fãs, bizarramente.


Strika: uma personagem feminina, sem
cair em estereótipos de gênero.
Existem exceções no entanto, e uma linha que se destaca nesse sentido é a extinta Exo-Squad, que incluía três mulheres na coleção original e na curta série animada, todas com aparências e personalidades distintas. Outro exemplo positivo, paradoxalmente, é a sublinha de Transformers Beast Wars e sua sequência Beast Machines - incluindo uma figura feminina que não se encaixava em padrões de “feminilidade”, a Vehicon Strika. A atual Robots in Disguise, por sua vez, conta com um bom numero de personagens femininas em tipos corporais diversos - mas só uma conta com representação em plástico. A muito odiada Challenge of the Go-Bots se destacava nesse sentido por ter personagens femininas casualmente. Não são nem de longe as únicas, óbvio. Na direção oposta, muitas linhas contavam com zero personagens femininas - caso de Battle Beasts, a bizarra Infaceables e a esquecível Street Sharks.


Um convite ao debate


Agora, encerro com um convite para a discussão (aqui, ou onde vir a postagem online): pense nas séries que assistiu quando era pequeno, e nas personagens femininas dessas séries. Nos quadrinhos e linhas de brinquedos. As mulheres estão bem representadas? Porque você acha isso? Da mesma maneira, incluir mais mulheres ou retirar alguma afetaria a dinâmica da série/filme/quadrinho/coleção? Como?

Parecem questões bobas, mas espero que resultem em respostas interessantes. A ideia não é que esse texto se encerre aqui, mas sim que se estenda além deste pequeno blog. Minha capacidade, isoladamente, para debater os problemas que essa representação pode causar são pequenas. O que me permito fazer é dar exemplos e puxar para a discussão.

*Uma discussão correlata diz respeito a representação de minorias, e o chamado “Tokenism”.


** Deve ser notado que não há ausência de “figuras sensuais” em linhas japonesas - mas estas são voltadas para um publico muito mais fechado que o restante das linhas, e são problemáticas em outros sentidos.

Um comentário:

  1. Pedro, você está certo! Sem reflexão, não há ação. Precisamos pensar de que modo a indústria poderia responder às demandas de um público cada vez mais diverso. A meu ver, eles estão experimentando algumas fórmulas novas, ainda que errando bastante

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