sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Conservadores, entendam: o Capitão América não é um dos seus

Esta semana, a Mecca do conservadorismo americano se envolveu em uma polêmica fabricada. A Fox News deu um legítimo chilique com a trama de Captain America: Sam Wilson #1. O problema? O já-não-tão-novo Capitão América agir como... Capitão América.


Explicando melhor: a revista, escrita por Nick Spencer mostra o herói cortando seus laços com o governo americano e com a S.H.I.E.L.D. para se focar nos problemas do povo. A decisão do ex-assistente social de lidar com questões políticas que afetam a população carente diretamente é recebida com gritos de “Capitão socialista” e “Não é o meu Capitão América”. Bem como fez a Fox News.

Em sua primeira aventura, Sam lida com um problema muito real: a xenofobia enfrentada pelos imigrantes vindos do México. Problema representado pelo grupo extremista Filhos da Serpente, uma alegoria clara para a Ku Klux Klan, que estava matando quem tentava a travessia.


A fúria e indignação dos conservadores - expressa primariamente através da fox News - foi clara. Para os apresentadores do programa Fox&Friends (por o vídeo), a revista era “um ataque a conservadores” e uma afronta aos EUA. É importante ressaltar que o que incomodou a Fox News não foram os valores dos Filhos da Serpente (novamente, uma representação da KKK), mas o fato deles serem lidos como os vilões.  


Entre as queixas, repetidas por outros autores conservadores, estavam o Capitão América não estar “impedindo imigrantes que estavam trazendo traficantes e estupradores para América; um pedido de retorno aos “velhos tempos em que o Capitão socava Hitler”; que os liberais* “criassem o seu próprio Capitão América”; e que “deixassem política fora dos quadrinhos”. Além disso, se chocaram com o fato do líder do grupo ser um americano, e não “um radical islâmico, um membro da ISIS, determinado a destruir a civilização ocidental”.




Inimigos “novos”?


Então vamos por partes: Não é de se admirar que a Fox News não perceba que a sua narrativa quanto a imigração é extremamente xenófoba. Tanto que ela repete clichês racistas emitidos pelo pré-candidato a presidência Donald Trump. Em sua visão de mundo, obviamente alguém chamado Capitão América deveria manter essa visão “patriótica” de “América para Americanos”. Nessa linha de pensamento, um grupo armado de “cidadãos de bem” protegendo a nação contra “os imigrantes” só poderiam ser os heróis - e é um tanto assustador que uma das maiores redes de notícias dos EUA tome o partido da KKK.


A Fox News e seus colegas em sites como Breitbart.com, Daily Caller e o colunista Allen B. West (que hilariamente disse que Sam Wilson era “O corvo”) trataram os filhos da Serpente como algo novo. Como se fosse um sinal dessa “ditadura do politicamente correto” e esses “tempos loucos” com um Capitão América NEGRO. Exceto que o grupo não é nada novo: a primeira história envolvendo a caricatura da KKK foi publicada em 1966 - antes do surgimento do Falcão.


A retórica do grupo é a mesma de todo grupo xenófobo de extrema direita: “Eles estão roubando nossos empregos”, “eles são criminosos e parasitas”, ‘são uma ameaça a pureza nacional”, o mesmo discurso pronto de ódio visto contra imigrantes, minorias raciais, étnicas e religiosas desde que o mundo é mundo. E que hoje no Brasil é vista contra os imigrantes haitianos e começa a ser vista contra os refugiados sírios.


E é um discurso contra o qual o Capitão América sempre se opôs, desde sua criação - não sem motivo, dado que esse era o discurso da Alemanha Nazista contra os judeus. O detentor original do título, Steve Rogers, era ele próprio filho de imigrantes irlandeses. O único detentor “oficial” do escudo que apoiaria o discurso dos Filhos de Serpente é John Walker - criado justamente como crítica a mentalidade reacionária da direita republicana.

Capitão América anti conservador? Sim: desde 1942


Nixon desmascarado, provavelmente.
Os Filhos da Serpente (em suas multíplas iterações) não são o único grupo de extrema direita contra o qual o Capitão América se opôs. Em 1987, John Walker enfrentou os Watchdogs - com cujos ideais ele simpatizava. O grupo se opunha ao “feminismo, comunismo, homossexualismo, aborto, pornografia, casamento interracial e imoralidades” (soa familiar?). Em 1974, Steve Rogers e Sam Wilson enfrentaram o Império Secreto, que incluia vários membros do alto escalão do governo Nixon (incluindo o próprio Nixon). A conspiração visava instalar uma ditadura conservadora nos EUA, sob a desuclpa de “combater a ameaça comunista”.


Os Watchdogs, queimando livros "imorais". 



O personagem que trajou o uniforme nos anos 50, William Burnside (o Cap dos sonhos da Fox News), posteriormente se tornou o Grão Diretor, um dos líderes da Força Nacional. O grupo era essencialmente o partido nazista americano. Burnside também foi membro dos Watchdogs, e fez parte (inadvertidamente) de um complô conservador para colocar “um verdadeiro americano” na presidência - dito “verdadeiro americano” era um fantoche do Caveira Vermelha.


Além disso, muitos de seus inimigos menores estão alinhados com a direita conservadora dos EUA. Ossos Cruzados, antes de se unir a Hydra, era um miliciano neonazista. O Flagelo do Submundo era um vigilante movido a idéia de “bandido bom é bandido morto” (muito como o Justiceiro, que Rogers e Wilson se recusam a ver como “herói”). Esmaga-Bandeiras era um radical anti estado, ligado a um subgrupo em particular da direita americana, os Sovereign Citizens**. Nuke, por sua vez, representa o nacionalismo cego na forma de um soldado psicótico devotado a sua versão distorcida do país. O Capitão também conquistou a inimizade das forças armadas (ao fazer a coisa certa, e se opor a golpes de estado, esquemas de financiamento de rebeldes, bombardeios “por precaução” e outras medidas tão comuns. 

Alguns anos atrás, Sam e o então capitão América James "Bucky" Buchanan Barnes
lidaram com o fascismo por trás do discurso do Tea Party. Na trama, o movimento era
uma fachada para o Caveira Vermelha. 


Dos (muitos) inimigos de extrema direita do Capitão, o mais bizarro é Hate Monger, criado em 1963 (no Quarteto Fantástico), vulgo o clone de Hitler. Munido de um “raio de ódio”, o clone de Hitler se vestia como um membro da KKK, e o discurso narrativo por trás dele era óbvio: se você se alinha com a KKK, você se alinha com Hitler.


Até nos seus primeiros quadrinhos, na Era de ouro dos quadrinhos, Rogers enfrentava não só a “ameaça nazista”, como também a ameaça de grupos extremistas dentro dos EUA. A primeira encarnação do Caveira Vermelha, George Maxon, era um empresário americano que se aliou aos nazistas por crer que os ideais de Hitler eram “o melhor para os EUA” (caracterização dada muito mais tarde, por sinal: na sua curta aparição em Captain America #1, Maxon só faltava ter um bigodinho para torcer e fazer “mwhahahahah” para ser a caricatura de um vilão).


“Tirem a política dos quadrinhos”.


"Apolítica"?
O pedido por “tirar a política dos quadrinhos” chega a ser cômico, especialmente se tratando de Capitão América, um super herói que nasceu como parte de um discurso político. A começar pela famosa capa do Capitão dando um murro na cara do Führer: em março de 1941, quando a revista foi publicada, os EUA ainda não haviam entrado na 2ª guerra mundial, e a maior parte da população e do congresso eram contra a participação dos EUA no conflito.


Com o personagem, Joe Simon e Jack Kirby davam uma mensagem clara: na visão deles, os ideais americanos eram incompatíveis com a ideia de “deixar Hitler de lado”. Da mesma maneira, o “übermensch” ariano era usado como o herói - um supersoldado loiro de olhos azuis, fruto da ciência nazista - para deixar claro que o verdadeiro “superhomem” jamais compactuaria com o nazismo. Lembrando que Rogers é um progressista para os padrões de hoje. Imagine então para os padrões dos anos 40.


Os conservadores fizeram um pedido de que os “liberais” criassem seu próprio Capitão América. Como Kurt Busiek fez questão de notar no Twitter, eles já o fizeram, em 1941. Vale lembrar que Jack Kirby e Joe Simon eram New York intellectuals progressistas, alinhados com o “New Deal” e muito mais próximos do socialismo do que do conservadorismo. Antes de trabalhar com super heróis, Simon fora um cartunista político, e a dupla criou o Capitão na intenção de fazer um discurso político. E que foi reapropriado pelo sistema como um ícone de propaganda.


John Walker: o Capitão dos sonhos dos conservadores.
E um fantoche do Caveira Vermelha. 
O Capitão América original sempre foi um “liberal” progressista e anti nacionalista. Isso não é uma invenção recente, nem uma “jogada publicitária” alinhá-lo com a esquerda americana. Da mesma maneira, Sam Wilson foi criado como um assistente social e ativista e seu surgimento foi inspirado pelos ativistas em movimentos contra o racismo no final dos anos 60. A última coisa que essas duas versões do personagem seriam é conservadores, nacionalistas e “patriotas”. Quem é assim é John Walker, o Agente Americano, que foi criado para ser tudo que o Capitão América não deveria ser (e para ser o Capitão que os republicanos gostariam de ter a seu serviço).


E assim o personagem sempre foi. O Capitão América lutou contra o racismo nos anos 60 (e ao fim da década, estreou o Falcão em suas páginas). Enfrentou a corrupção no governo americano e o autoritarismo nos anos 70; largou o patriotismo cego após Watergate, vagando pelo país como o Nômade. Novamente abriu mão do título quando o governo lhe exigiu que trabalhasse para o governo Reagan, nos anos 80, à época do escândalo Irã Contra. Discursou contra a homofobia em uma época que a editora proíbia de se falar “gay”. Reconheceu os crimes cometidos pelos EUA ao longo do século XX. Discursou contra a islamofobia no auge do pânico sobre terrorismo e se opôs de multiplas formas (algumas metafóricas, outras explícitas) aos ataques a liberdades civis e de informação durante a “Guerra ao Terror”.


Até as histórias usadas no cinema são profundamente políticas. O primeiro vingador tem o mesmo discurso contra patriotismo cego que sempre marcou o personagem (pra ressaltar: o que motiva Rogers a se alistar no exército não é a ideia de que “a América é Grande”, mas o reconhecimento que o Nazismo não está tão distante dos EUA). Soldado Invernal trata da questão de “ataque preventivo” e afirma explicitamente que a política externa dos EUA (“gentil demais” para os republicanos) é algo que sairia da mente de um nazista. Guerra Civil, por sua vez, se baseia em uma história que discute serviço militar obrigatório, direito a informação, liberdades civis e direitos humanos.
Nada mai anos 90 que isso. 


Basicamente, “tirar a política do Capitão América” é torná-lo uma sombra de si mesmo, um personagem irrelevante (como, em minha opinião, ocorreu quando Rick Remender jogou ele em outra dimensão, ou quando ele virou um lobisomem - sim, isso aconteceu!). E dado o histórico do personagem, ele nunca deveria agradar os conservadores da Fox News, que se compadecem por estarem falando mal da Ku Klux Klan.


Mas e o Estado Islâmico?


Dá pra ver que é "apolítico" e "nacionalista"...
Quanto ao choque do apresentador da Fox News, Clayton Morris (auto proclamado especialista no personagem) do Capitão estar enfrentando conservadores e não o estado Islâmico? Bem, uma pergunta simples: o que é uma ameaça maior à democracia americana, um grupo terrorista cuja zona de influência está no Iraque e na Síria, ou radicais nacionalistas e xenófobos despejando discurso de ódio dentro do país?


Imigração moldou e formou os EUA. Esperar que o Capitão América - a representação de tudo que o país deve e pode ser - vá e lute contra ela com base em argumentos de ódio é absurdo. Desde seus tempos como o Nômade, o que o Capitão América mais combateu foi a podridão interna dos EUA: a corrupção, a desigualdade, o ódio, o preconceito, a ignorância. E é justamente isso que Sam Wilson está fazendo: combatendo a ala podre da sociedade americana. Pena que alguns tenham se sentido ofendidos pelo personagem estar lutando contra a KKK, e não ao lado dela.


O Capitão de Ultimates: reacionário,
nacionalista e bruto.
Eu até acho engraçado que tantos conservadores (aqui e lá) digam adorar o Capitão América. Talvez porque tenham lido a versão de Mark Millar para o personagem na linha Ultimates, esse sim um reacionário xenófobo, arrogante, e disposto a fazer qualquer coisa “pela América”. Ou mais provavelmente porque não leiam, e achem que “Capitão América” só pode ser um cara conservador, moralista e militarista - como insistem as críticas ignorantes de parte da esquerda.


Mas para esses conservadores e libertários que querem um herói mais parecido com eles, posso recomendar alguns. Para começar, o Justiceiro (para quem bandido bom é bandido morto, ressalto). Embora tenham saído de linha, o Agente Americano (vulgo, o Capitão América que existe na cabeça deles) e o Fighting American. Questão, Senhor A e Rorschach - todos radicais objetivistas, embora o Questão tenha se tornado muito mais do que isso nas mãos de Dennis O'Neill; O Homem de Ferro (criado como uma réplica do herói Randiano John Galt), o homem que se fez sozinho, sem ajuda de ninguém, e sem depender do Estado; Hal Jordan (por muito tempo, O cara de direita no universo DC, colocado em oposição eterna ao Arqueiro Verde) e é claro, a versão de Frank Miller para o Batman (o extremo do libertário radical, um sovereign citizen com MUITO dinheiro e que não reconhece a autoridade do Estado).


O terrorista sendo interrogado é posteriormente
jogado em um triturador.
Mas para os que pensam como a Fox News, e querem alguém que pense justamente como eles, eu recomendo outra obra de Frank Miller: Terror Sagrado. Nela, vão achar toda a demonização de estrangeiros (especialmente árabes) que podem sonhar, e “heróis” durões dispostos a torturar e matar os inimigos da civilização ocidental.




* A centro esquerda americana

** Movimento libertário radical que não apenas se opõe a autoridade do Estado e das leis, mas crê que as mesmas não se aplicam a eles por motivos... confusos.  

7 comentários:

  1. Muito bom o texto, realmente! Parabéns!

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  2. Você sabia que indiretamente você ajudou o argumento conservador-olavista da revolução cultural por meio da engenharia social dos meios de comunicação e entretenimento,não é?

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    1. O argumento da foz hoje é o de que estão transformando o Cap num comunista, a materia só tenta lembrar que ele foi um "comunista" desde os anos 40!

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  3. Também ajudou a mostrar aos "Nova Direita" que a cultura que eles tanto admiram é na verdade instrumento de manobra social. É rendoso notar que seu texto foca exatamente onde em mostrar a divisão interna de visões dentro do,pelo menos difundido, homogeneo espectro político que a Direita.Seria proveitoso usar essa divisão criada pelo conflito Solidario x Egoista para uma discussão sobre as diferenças do Conservadorismo Libertario e do Conservadorismo Tradicional ou Cristão

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