quinta-feira, 14 de julho de 2016

Gundam 00: o que uma série de robôs tem a nos falar sobre a guerra ao terror?

Os pilotos de 00: três grupos étnicos vitimados pelo terror.
Séries de robôs gigantes tem abordado uma gama diversa de gêneros desde que surgiram com Tetsujin-28 Go, em 1956. Já falei antes de como foram influenciadas pela literatura Graustarkiana, das ligações do gênero com o horror, e de sua forte conexão com literatura de guerra. Mas uma obra específica pode ter muito as nos dizer sobre um dilema contemporâneo: o terrorismo.  Falo de Mobile Suit Gundam 00, a 11ª série de TV da gigantesca franquia Gundam

Gundam sempre teve um elenco diverso, e 00 (apesar de todos os seus problemas em sua segunda temporada, que não tem a ver com representatividade, mas com coesão narrativa) não é exceção. Entre seus quatro personagens principais, temos dois dos grupos étnicos menos vistos em qualquer mídia: o curdo Soran Ebrahim (vulgo, Setsuna F. Seiei, um nome falso tão obviamente falso que viola várias regras de nomenclatura japonesa) e o cazaque Allelujah Haptism (outro nome falso: tomado como cobaia humana desde criança, seu nome verdadeiro jamais foi revelado).

Junto a eles temos o irlandês Neil Dilandy/Lockon Stratos, mais tarde substituído por seu gêmeo Lyle Dilandy em uma das jogadas mais cínicas da história da franquia e o humano artificial Tieria Erde (a.k.a. "vogais", segundo a fanbase). O resto da série é igualmente multi-étnico, sem apelar para clichês nacionais, estereótipos raciais ou discursos ufanistas que poderiam contradizer a mensagem anti-nacionalista e globalista da trama. Mas a escolha da etnia de três dos pilotos da série diz muito sobre O QUE 00 queria dizer, e por que a série deveria ser vista.

Soran Ebrahim e os outros soldados infantes da KPSA.
Infelizmente, uma realidade em certas zonas de conflito. 
Gundam sempre lidou com várias das questões mais duras da guerra - discurso tragicamente prejudicado por sua natureza mercadológica - e 00 abordou de cara um aspecto que esteve sempre presente na franquia, mas que não era abordado com a devida seriedade: o uso de soldados infantes em zonas de conflito pelo globo, abordado em conjunto com o fanatismo religioso como catalizador para militantes. Seu protagonista, Setsuna, tem uma longa história nos campos de batalha: aos 8 anos, foi recrutado pelo grupo terrorista KPSA e seu porta voz, o mercenário Ali al-Saachez, para uma "cruzada em nome de Deus".

Seu envolvimento com o extremismo religioso e o terrorismo deu lugar ao envolvimento com o terrorismo político que serve de centro para a série. Não é preciso olhar fundo para ver que Setsuna é um homem traumatizado, incapaz de acreditar na ideia de paz duradoura. A fé no divino deu seu lugar para fé nas armas do grupo terrorista "pela paz" Celestial Being: os Gundams, idealizados pelo misterioso (e há muito falecido) Aeolia Schenberg. 

Resultado de um atentado do IRA em Coventry, em 1939:
A Irlanda tem um logo histórico com o terrorismo.
Gundam 00 é um fruto da guerra ao terror e do mundo globalizado em que vivemos. Sua organização Celestial Being, ironicamente, são terroristas que desempenham o mesmo papel que os EUA se deram após o 11 de setembro: o de policiar o mundo, intervindo em zonas de conflito e impondo a "paz" na ponta da espada. E justamente por isso, três de seus protagonistas pertencem a povos historicamente vitimados pelo terrorismo e pelas ações de combate ao terrorismo.

A "causa" da Celestial Being - a paz mundial - pode parecer nobre, não fossem seus métodos. Impondo a paz na base da bala da mesma maneira que os EUA impõe a "democracia" e os soviéticos impunham "o socialismo", a organização exemplifica de forma brutal o duplipensar tão comum na política. Enquanto travam sua luta "pela paz" na qual não acreditam (endurecidos, cada um, por seus próprios traumas do passado), os "heróis" de 00 ignoram as vítimas que deixam no fogo cruzado. 

Saji e Louise: vítimas inocentes em um conflito
ao qual não pertencem. 
Essa perspectiva das vítimas é oferecida na série pelos olhos do jovem Saji Crossroad (que, assim como os pilotos, tem seu próprio passado com o terrorismo), ironicamente o personagem mais odiado por parte dos fãs. Durante a primeira temporada da série, Saji não é um combatente, mas ainda assim o conflito entre Celestial Being e os governos da Terra lhe traz seu custo em sangue. A irmã, a jornalista Kinue, é assassinada "por saber demais" (sem jamais ter descoberto algo relevante). A namorada, Louise Halevy, perde a família e um braço em um atentado por uma célula radical da organização. Mais tarde, Saji vira parte integral do conflito após ser falsamente acusado de ser parte do grupo terrorista Katharon

A busca pela "Paz" de Celestial Being, por sua vez, beneficiou justamente aqueles que estavam por trás dos conflitos. Isso já se torna claro no começo da série, quando a União (super estado composto por boa parte das Américas juntamente com Japão e Austrália) aproveita a "intervenção" do grupo na Talívia (nação composta por Venezuela e Bolívia) para silenciar qualquer chance de secessão do bloco econômico, vencendo uma guerra contra separatistas sem disparar um único tiro. E ao chegar a segunda temporada, as ações da Celestial Being resultaram em um estado totalitário dedicado à mesma "preservação da paz" que os "heróis": a paz sob a mira da arma dos A-Laws

Não é, como pode parecer - e lamentavelmente é tomado como por parte da fanbase - sobre "robôs fazendo coisas legais". A franquia sempre foi extremamente política - ignorar e fingir que é "só entretenimento barato" é, na melhor das hipóteses, ingenuidade - mas enquanto séries anteriores olhavam para os conflitos do passado (particularmente para a segunda guerra mundial) e os extrapolavam como conflitos futuros, 00, pela primeira vez, virava as lentes de Gundam para um conflito do presente. Um do qual ainda não saímos. Como o que ocorreu hoje em Nice deixa claro. 

O filme de 00, A Wakening of the Trailblazer, lida com temas muito diferentes - mas não deixa de ser interessante. 


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