quarta-feira, 22 de março de 2017

Spencer, meus parabéns: você ACABOU com o Capitão América

Quando eu achava que as coisas não podiam ficar piores... Nick Spencer vai e mete mais um retcon na história do Capitão América: que a versão do herói que foi alterada por um cubo cósmico era a versão HERÓICA e que o que o Caveira Vermelha fez com ajuda do cubo senciente Kobik foi desfazer as alterações feitas por um cubo cósmico durante a segunda guerra mundial - cubo cósmico usado para impedir que Adolph Hitler vencesse a guerra (como fica aquele papo que "A Hydra não é nazista" mesmo?).

Como se já não bastasse a cena (desnecessária e insultosa) de Rogers dizendo a um Tony Stark em coma que "tudo que viria era para destruir tudo aquilo que ele fez".


Ao longo dos anos, a Marvel fez muita coisa idiota com seus personagens. Criou meia dúzia de Hulks diferentes, fez o Coisa usar uma máscara de Bobba Fett barata, revelou que o Homem de Ferro era um super vilão e depois desfez isso transformando ele em um adolescente. Criou o imenso imbróglio que foi a Saga do Clone, toda a confusão que são os quadrinhos dos X-Men, forçou todos os seus heróis em armaduras HARDCOREEEEEE nos anos 90, encalhou seus personagens em mega-eventos sem pé nem cabeça pelas duas décadas do século XXI e nem vamos tocar no fiasco de One More Day.


Mas esta? Quando Ed Brubaker largou do título em 2012 e foi substituído por Rick Remender, seria de se imaginar que aquele seria o ponto mais baixo da publicação contemporânea do herói. Afinal, difícil pensar em como a revista poderia piorar depois de - em um período politicamente tumultuado em que o herói estava em seu auge nos cinemas - ver um roteirista jogando-o em outra dimensão por 12 edições e forçando-o a lutar contra uma caricatura da ameaça amarela misturada com a criatura da lagoa negra por outras 12.

Mas Spencer superou Remender. Depois de um primeiro ano razoável em Sam Wilson: Captain America, Spencer causou polêmica... basicamente jogando o original no lixo com duas palavras: Hail Hydra, transformando o herói que foi criado como resposta ao nazismo em um membro ativo de uma alegoria para o nazismo. Spencer e a Marvel tentaram se defender, alegaram que a Hydra não era nazista, deram desculpas, pintaram o reveal como sendo fruto de manipulação por parte de seu arqui-inimigo, Johann Schmidt...

E continuaram construindo uma narrativa em que o herói criado como resposta e antítese do nazismo era não apenas parte de uma organização composta primariamente por nazistas, sustentada em discursos neonazistas e pautada pela lógica da "raça superior", mas tinha como objetivo maior assumir o controle da mesma organização (para melhor impor seus ideais sobre o mundo) e era amigo do peito de personagens que por anos foram estabelecidos como seus maiores inimigos (como Helmut von Zemo, reescrito por Spencer como amigo de infância de Rogers).
Isso, só que pior

Não que a escrita de Spencer, com seus twists gratuítos e falhas lógicas (um grupo anti-imigração nos anos 30 recrutando uma imigrante irlandesa; A Hydra dos anos 30 abraçando o doentio e fragilizado Rogers como "tendo grande potencial"; ninguém no Universo Marvel suspeitando de Rogers por SETENTA ANOS), precisasse dessa insanidade para ser ruim. Mas como é, Spencer insulta a inteligência e a história da editora em que trabalha. E a Marvel demonstra seu descaso com seus próprios personagens acatando com a ideia de gerico de Spencer - um repeteco piorado do desastroso The Crossing, de 1995.

Repeteco este que começou com uma ideia que podia ser boa: que a Hydra tivesse agentes infiltrados em várias organizações heróicas da Marvel. E que foi imbecilizada quando Spencer gritou "E SE FOSSE O CAPITÃO?"

O mais preocupante é que Spencer continua sustentando que a Hydra não é uma organização nazista... ao mesmo tempo em que sugere que a Hydra (liderada por HITLER) era o inimigo na segunda guerra mundial e que os aliados usaram um cubo cósmico para fazer o Capitão mudar de lado - e que apresenta a Hydra como fruto do maior nazista da Marvel, Johann Schmidt.
Há fortes indícios que outro personagem reescrito por Spencer como
parte da organização totalmente-não-nazista seja Magneto, um sobrevivente do holocausto

Em poucas palavras, a Marvel pegou o seu maior herói - e um dos primeiros personagens da editora - e o transformou em um vilão que só era heróico por ter sido alvo de lavagem cerebral. Pegou a maior criação de Hymie Simon e Jacob Kurtzberg, a resposta de dois jovens judeus para a ameaça nazista, e fizeram dele o que ele foi criado para combater. Do homem que socou Hitler, Rogers passou para o homem que quer estabelecer um estado totalitário nos EUA e que servia diretamente aos nazistas.



Tudo isso em nome de uma controversia barata, uma forma fácil de obter vendas e manchetes, uma completa prostituição do personagem, mais vergonhosa do que quando o transformaram em um lobisomem ou quando fizeram ele vestir uma armadura futurista porque era a estética da época.


Algum tempo atrás, escrevi alguns artigos - fundamentados, pautados e detalhados - sobre como o Capitão América não era nem nunca foi um conservador. Já escrevi sobre como a revista do personagem foi a primeira a introduzir um personagem gay - e de forma extremamente respeitosa! - nos quadrinhos de super-heróis americanos, quando a editora proibia qualquer menção ao termo. Minha monografia foi sobre a construção de uma identidade ideal para os EUA e o uso desta identidade ideal como instrumento de crítica ao governo e a sociedade americana dentro dos quadrinhos do personagem. Muito de quem eu sou e de como eu vejo o mundo foi influenciado por quadrinhos do Capitão América.

E Spencer jogou tudo isso fora. Corrompeu e distorceu o maior herói que sua editora já teve. Sua nova revelação escarnece de quem acreditava futilmente que essa trama terminaria com Rogers sendo devolvido ao seu estado original, com o retorno do VERDADEIRO Capitão América. E pra que?

Pra vender mais?

Pra conseguir manchetes?

Pra fazer alguma crítica social mambembe, a moda do trabalho geral de Spencer? Dizer que a América Branca sempre foi fascista e que Sam Wilson (o "seu" capitão) é que é a América boa? Insinuar - como já fez no twitter - que quem preferia Rogers é nazista?

Parece idiota dizer que isso me incomoda em um nível pessoal, afinal, é só um personagem de quadrinhos, mas é um personagem que moldou muito de minha visão de mundo - que me fez enxergar o mundo de outra maneira, ver o outro de outra forma. Que me fez entender a diferença entre lei e justiça, entre heroísmo e soberba, entre idealismo e nacionalismo. Ver que o mundo podia ser melhor do que é. Que nós podiamos ser melhores do que somos.

Em 2007, após o mega-evento Guerra Civil, a Marvel quis marcar manchetes com o Capitão América, vendo o momento que o país vivia. Pensando nisso, o roteirista Ed Brubaker usou da morte do personagem como uma alegoria para a morte dos ideais americanos e como estes estavam se perdendo em nome de uma falsa sensação de segurança combinada com uma naturalização da vingança. Em 2014, os irmãos Russo usaram do personagem para críticar a mentalidade vigente na "defesa" americana - de atacar primeiro "por via das dúvidas" e os paralelos entre o excepcionalismo americano e o ideário nazista. E isso só falando de histórias recentes: Império Secreto (o arco original, de Steve Englehart, em 1974) e Nômade trataram da corrupção vigente e do que os EUA significam; Captain America No More tratou de idealismo e do quão pouco os EUA tem em comum com os ideais que diz defender. What If #44 criticou abertamente o nacionalismo americano.

Nenhuma dessas histórias teve que desvirtuar Rogers. Mas Spencer - laureado pelo site Bleeding Cool como o melhor roteirista que o personagem teve em anos - parece só ver uma maneira de usar Rogers nestes anos de recrudescimento do supremacismo racial e do nacionalismo: fazer dele o vilão. Ao invés de usar o personagem para críticar o que os EUA se tornaram, Spencer o distorce para fazer dele o que ele deveria criticar.

Se era um Capitão América reacionário que Spencer queria, isso já existia, se chama John Walker. Se era um fascista, temos William Burnside. Mas não: ele sentiu a necessidade de destruir 76 anos de publicação... para ganhar nada em troca. Só para ver um ícone de oposição ao nazi-fascismo ser convertido em símbolo máximo dele. Junto com converter vários outro personagens que nunca flertaram como o nazis... err, hydraismo em membros do grupo terrorista. Todas as histórias do personagem, todas, estão arruinadas pelas mudanças idiotas que Spencer fez. Me leva a perguntar se isso é a maneira da Marvel mostrar um dedo do meio final ao Kirby; fazendo do personagem com o qual ele mais se identificava, o personagem que ele afirmava ser o seu "eu ideal" o seu vilão mor. Um vilão mor que trabalha para retornar o mundo ao seu "devido estado" - em que os nazistas venceram a segunda guerra mundial. Não é o meu capitão. Com certeza. Não é sobre a caricatura grotesca de Spencer que eu fiz minha monografia, que eu passei horas e horas e horas lendo e anotando detalhes sobre o personagem. Vendo a maneira como sua caracterização foi construída e solidificada ao longo dos anos, como ele foi passando de um ícone de propaganda para uma rejeição da propaganda. Sendo moldado e influenciado pelo que lia... apenas ver tudo ser destruído por um roteirista mequetrefe e uma editora desesperada para ter mais atenção do que sua divisão de cinema.

E depois não entendem por que eu fui para a IDW.




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