Quando eu achava que as coisas não podiam ficar piores... Nick Spencer vai e mete mais um retcon na história do Capitão América: que a versão do herói que foi alterada por um cubo cósmico era a versão HERÓICA e que o que o Caveira Vermelha fez com ajuda do cubo senciente Kobik foi desfazer as alterações feitas por um cubo cósmico durante a segunda guerra mundial - cubo cósmico usado para impedir que Adolph Hitler vencesse a guerra (como fica aquele papo que "A Hydra não é nazista" mesmo?).
Como se já não bastasse a cena (desnecessária e insultosa) de Rogers dizendo a um Tony Stark em coma que "tudo que viria era para destruir tudo aquilo que ele fez".
Ao longo dos anos, a Marvel fez muita coisa idiota com seus personagens. Criou meia dúzia de Hulks diferentes, fez o Coisa usar uma máscara de Bobba Fett barata, revelou que o Homem de Ferro era um super vilão e depois desfez isso transformando ele em um adolescente. Criou o imenso imbróglio que foi a Saga do Clone, toda a confusão que são os quadrinhos dos X-Men, forçou todos os seus heróis em armaduras HARDCOREEEEEE nos anos 90, encalhou seus personagens em mega-eventos sem pé nem cabeça pelas duas décadas do século XXI e nem vamos tocar no fiasco de One More Day.
Mas esta? Quando Ed Brubaker largou do título em 2012 e foi substituído por Rick Remender, seria de se imaginar que aquele seria o ponto mais baixo da publicação contemporânea do herói. Afinal, difícil pensar em como a revista poderia piorar depois de - em um período politicamente tumultuado em que o herói estava em seu auge nos cinemas - ver um roteirista jogando-o em outra dimensão por 12 edições e forçando-o a lutar contra uma caricatura da ameaça amarela misturada com a criatura da lagoa negra por outras 12.
Mas Spencer superou Remender. Depois de um primeiro ano razoável em Sam Wilson: Captain America, Spencer causou polêmica... basicamente jogando o original no lixo com duas palavras: Hail Hydra, transformando o herói que foi criado como resposta ao nazismo em um membro ativo de uma alegoria para o nazismo. Spencer e a Marvel tentaram se defender, alegaram que a Hydra não era nazista, deram desculpas, pintaram o reveal como sendo fruto de manipulação por parte de seu arqui-inimigo, Johann Schmidt...
E continuaram construindo uma narrativa em que o herói criado como resposta e antítese do nazismo era não apenas parte de uma organização composta primariamente por nazistas, sustentada em discursos neonazistas e pautada pela lógica da "raça superior", mas tinha como objetivo maior assumir o controle da mesma organização (para melhor impor seus ideais sobre o mundo) e era amigo do peito de personagens que por anos foram estabelecidos como seus maiores inimigos (como Helmut von Zemo, reescrito por Spencer como amigo de infância de Rogers).
Não que a escrita de Spencer, com seus twists gratuítos e falhas lógicas (um grupo anti-imigração nos anos 30 recrutando uma imigrante irlandesa; A Hydra dos anos 30 abraçando o doentio e fragilizado Rogers como "tendo grande potencial"; ninguém no Universo Marvel suspeitando de Rogers por SETENTA ANOS), precisasse dessa insanidade para ser ruim. Mas como é, Spencer insulta a inteligência e a história da editora em que trabalha. E a Marvel demonstra seu descaso com seus próprios personagens acatando com a ideia de gerico de Spencer - um repeteco piorado do desastroso The Crossing, de 1995.
Repeteco este que começou com uma ideia que podia ser boa: que a Hydra tivesse agentes infiltrados em várias organizações heróicas da Marvel. E que foi imbecilizada quando Spencer gritou "E SE FOSSE O CAPITÃO?"
O mais preocupante é que Spencer continua sustentando que a Hydra não é uma organização nazista... ao mesmo tempo em que sugere que a Hydra (liderada por HITLER) era o inimigo na segunda guerra mundial e que os aliados usaram um cubo cósmico para fazer o Capitão mudar de lado - e que apresenta a Hydra como fruto do maior nazista da Marvel, Johann Schmidt.
Há fortes indícios que outro personagem reescrito por Spencer como parte da organização totalmente-não-nazista seja Magneto, um sobrevivente do holocausto |
Em poucas palavras, a Marvel pegou o seu maior herói - e um dos primeiros personagens da editora - e o transformou em um vilão que só era heróico por ter sido alvo de lavagem cerebral. Pegou a maior criação de Hymie Simon e Jacob Kurtzberg, a resposta de dois jovens judeus para a ameaça nazista, e fizeram dele o que ele foi criado para combater. Do homem que socou Hitler, Rogers passou para o homem que quer estabelecer um estado totalitário nos EUA e que servia diretamente aos nazistas.
Tudo isso em nome de uma controversia barata, uma forma fácil de obter vendas e manchetes, uma completa prostituição do personagem, mais vergonhosa do que quando o transformaram em um lobisomem ou quando fizeram ele vestir uma armadura futurista porque era a estética da época.
Algum tempo atrás, escrevi alguns artigos - fundamentados, pautados e detalhados - sobre como o Capitão América não era nem nunca foi um conservador. Já escrevi sobre como a revista do personagem foi a primeira a introduzir um personagem gay - e de forma extremamente respeitosa! - nos quadrinhos de super-heróis americanos, quando a editora proibia qualquer menção ao termo. Minha monografia foi sobre a construção de uma identidade ideal para os EUA e o uso desta identidade ideal como instrumento de crítica ao governo e a sociedade americana dentro dos quadrinhos do personagem. Muito de quem eu sou e de como eu vejo o mundo foi influenciado por quadrinhos do Capitão América.
E Spencer jogou tudo isso fora. Corrompeu e distorceu o maior herói que sua editora já teve. Sua nova revelação escarnece de quem acreditava futilmente que essa trama terminaria com Rogers sendo devolvido ao seu estado original, com o retorno do VERDADEIRO Capitão América. E pra que?
Pra vender mais?
Pra conseguir manchetes?
Pra fazer alguma crítica social mambembe, a moda do trabalho geral de Spencer? Dizer que a América Branca sempre foi fascista e que Sam Wilson (o "seu" capitão) é que é a América boa? Insinuar - como já fez no twitter - que quem preferia Rogers é nazista?
Parece idiota dizer que isso me incomoda em um nível pessoal, afinal, é só um personagem de quadrinhos, mas é um personagem que moldou muito de minha visão de mundo - que me fez enxergar o mundo de outra maneira, ver o outro de outra forma. Que me fez entender a diferença entre lei e justiça, entre heroísmo e soberba, entre idealismo e nacionalismo. Ver que o mundo podia ser melhor do que é. Que nós podiamos ser melhores do que somos.
Em 2007, após o mega-evento Guerra Civil, a Marvel quis marcar manchetes com o Capitão América, vendo o momento que o país vivia. Pensando nisso, o roteirista Ed Brubaker usou da morte do personagem como uma alegoria para a morte dos ideais americanos e como estes estavam se perdendo em nome de uma falsa sensação de segurança combinada com uma naturalização da vingança. Em 2014, os irmãos Russo usaram do personagem para críticar a mentalidade vigente na "defesa" americana - de atacar primeiro "por via das dúvidas" e os paralelos entre o excepcionalismo americano e o ideário nazista. E isso só falando de histórias recentes: Império Secreto (o arco original, de Steve Englehart, em 1974) e Nômade trataram da corrupção vigente e do que os EUA significam; Captain America No More tratou de idealismo e do quão pouco os EUA tem em comum com os ideais que diz defender. What If #44 criticou abertamente o nacionalismo americano.
Nenhuma dessas histórias teve que desvirtuar Rogers. Mas Spencer - laureado pelo site Bleeding Cool como o melhor roteirista que o personagem teve em anos - parece só ver uma maneira de usar Rogers nestes anos de recrudescimento do supremacismo racial e do nacionalismo: fazer dele o vilão. Ao invés de usar o personagem para críticar o que os EUA se tornaram, Spencer o distorce para fazer dele o que ele deveria criticar.
Se era um Capitão América reacionário que Spencer queria, isso já existia, se chama John Walker. Se era um fascista, temos William Burnside. Mas não: ele sentiu a necessidade de destruir 76 anos de publicação... para ganhar nada em troca. Só para ver um ícone de oposição ao nazi-fascismo ser convertido em símbolo máximo dele. Junto com converter vários outro personagens que nunca flertaram como o nazis... err, hydraismo em membros do grupo terrorista.
Todas as histórias do personagem, todas, estão arruinadas pelas mudanças idiotas que Spencer fez. Me leva a perguntar se isso é a maneira da Marvel mostrar um dedo do meio final ao Kirby; fazendo do personagem com o qual ele mais se identificava, o personagem que ele afirmava ser o seu "eu ideal" o seu vilão mor. Um vilão mor que trabalha para retornar o mundo ao seu "devido estado" - em que os nazistas venceram a segunda guerra mundial.
Não é o meu capitão. Com certeza. Não é sobre a caricatura grotesca de Spencer que eu fiz minha monografia, que eu passei horas e horas e horas lendo e anotando detalhes sobre o personagem. Vendo a maneira como sua caracterização foi construída e solidificada ao longo dos anos, como ele foi passando de um ícone de propaganda para uma rejeição da propaganda. Sendo moldado e influenciado pelo que lia... apenas ver tudo ser destruído por um roteirista mequetrefe e uma editora desesperada para ter mais atenção do que sua divisão de cinema.
E depois não entendem por que eu fui para a IDW.
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