segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Arqueiro Verde - muito além de um clone do Batman.

A primeira aparição: um Batman verde.
Agora que o seriado Arrow se aproxima de sua quarta temporada, e finalmente passa a utilizar o nome Arqueiro Verde, a velha alegação de que se trata apenas de “Batman sem o Batman” se torna cada vez mais comum. E como tal, sinto-me na obrigação de expor um pouco da história deste tão ignorado atirador da DC Comics - que sim, surgiu como uma imitação barata do Batman.


Criado por Morton Weisinger e George Papp em 1941, o herói foi um dos primeiros integrantes da onda de copycats da era de ouro dos quadrinhos de super heróis.  A dupla foi inspirada no serial “The Green Archer”, de James W. Horne, lançado no ano anterior, e que trazia outro arqueiro combatente do crime. Enquanto Batman tinha o Batmóvel, ele tinha o Flecha Carro. O morcego tinha o Batjato, ele tinha o Flecha Jato. O cruzado encapuzado tinha Robin, o menino prodígio, o Arqueiro Verde tinha Ricardito. E no caso mais inexplicável, o arqueiro verde tinha sua base secreta na... Flecha Caverna.

Sim: a flecha caverna.


As únicas grandes diferenças entre ele e o cavaleiro das trevas estavam no figurino (inspirado em Robin Hood), no estilo de combate e na história de origem. Na era de ouro dos quadrinhos, Oliver Queen era um arqueólogo especializado em cultura nativo-americana, enquanto seu protegido Roy Harper era um menino que perdeu os pais em um acidente de avião em Lost Mesa. Após um assalto a um museu destruir a carreira de Queen, um encontro fortuito leva a dupla a se juntar para enfrentar um grupo de criminosos na área de preservação. E munidos do tesouro perdido de Lost Mesa, os dois se tornam Arqueiro Verde e Ricardito.


A origem do herói foi reescrita pelo mestre dos quadrinhos Jack Kirby, em 1959. Na nova origem, Oliver Queen era um playboy milionário que acidentalmente caiu no mar (por ter “bebido um pouco demais”. Preso na Ilha Estrela do Mar, Queen sobrevive com técnicas improvisadas de arco e flecha. Após salvar a tripulação de um cargueiro tomado por um grupo de piratas, o playboy assume o nome de Arqueiro Verde. A nova versão fazia de Queen um “Robson Crusoé moderno”, e serviu de base para todas as leituras posteriores do herói.

Crescendo a Barba


Mas foi no final dos anos 60 que o personagem realmente se desprenderia da sina de “imitação do Batman”. Sob roteiro de Dennis O’Neill e arte de Neal Adams, que assumiram o personagem em 1969, Queen passaria por grandes mudanças. A primeira foi visual: Adams repaginou a roupa e deu a Queen o seu distinto cavanhaque. Mas as mudanças maiores seriam políticas. Em Justice League of America #75 (1969), Queen perde toda a sua fortuna, e se vê obrigado a morar nas ruas.

"O agitador e o policial"
A perda da fortuna e o contato direto com a população carente de Star City levam o herói a se tornar um defensor da mudança social e um membro ativo da esquerda política americana. De um milionário sem envolvimento direto com a política, como Bruce Wayne, Queen passa a ser um militante marxista, clamando por uma mudança radical no sistema. Pareando o “Robin Hood americano” com o Lanterna Verde, a dupla O’Neil e Adams abordou múltiplas questões sociopolíticas, aproveitando da disparidade de ideias entre os dois. Enquanto Jordan era o “policial”, que acreditava ser possível mudar o mundo “pelas regras”, Queen era o “agitador”, que via necessária uma mudança radical em tudo.  Da desigualdade social ao racismo institucionalizado, passando por senhorios abusivos, agiotagem e na história mais famosa dessa época do herói, o vício em drogas.


Dando lição de moral em Hal Jordan por sua adesão cega
às regras e à autoridade.
Em Snowbirds don’t Fly, publicada nas revistas  Green Lantern/Green Arrow #85 e 86, Queen lidava com um problema “em casa”: a revelação que seu protegido, Roy Harper, estava viciado em heroína. A trama foi uma das primeiras a abordar com seriedade o vício em drogas, até então ignorado pelas revistas de super heróis. O’Neill usou do seu background como ativista social e jornalista para abordar o tema com a profundidade devida.


A primeira história da DC a lidar
com o vício; Snowbirds don't fly.
Nas duas edições, Oliver descobre que um grupo de viciados se apropriou de algumas de suas flechas. Suspeitando que elas tenham sido roubadas de casa, Queen e Hal Jordan fazem uma batida em uma boca de fumo, onde encontram Harper (com quem Queen não fala direito “a cerca de um mês”, por não ter tempo para lidar com o quase-filho) “fazendo uma investigação secreta”- o que se segue após a é uma longa exposição das questões sociais por trás do tráfico de drogas, a maneira como a pobreza, o isolamento social e o abandono familiar contribuem para o vício. Nem Hal nem Oliver percebem a indireta do rapaz, até que o vigilante volta para casa e flagra o adolescente se drogando. Ao tom de surpresa do mentor, Harper tem uma única resposta:


“De quem você achou que eu estava falando”?


Tomado pela ira, Oliver surra o rapaz, e o expulsa de casa. Antes de ir embora, Harper joga na cara do mentor toda a sua hipocrisia, de como Oliver se sente “melhor que os outros” e “se chapa em sua própria retidão”. Enquanto o Arqueiro se culpa por “ter falhado” com o rapaz, o Lanterna trata de ir levar Harper - novamente drogado - aos cuidados de Dinah Lance (a Canário Negro), então namorada de Queen. No caminho, Roy expõe o que o levou a tentar drogas: não bastando o abandono de Queen, haviam todas “as mentiras que sua geração contou”. Frente a isso, na mente do rapaz, porque confiar no que adultos lhe contavam sobre drogas?



A trama se encerra com o funeral de um dos amigos viciados de Harper, vítima de uma overdose. Enquanto Queen lamenta sua incapacidade de deter todos os traficantes, Harper renega seu mentor por ter lhe virado as costas quando mais precisava. Ali se encerrava a série politizada dos dois heróis verdes, com Queen se sentindo orgulhoso do protegido por largar o vício e “sair do ninho”, apesar de perder ali o vínculo com o rapaz.. O discurso político de O’Neil era claro ao alertar para o sofrimento de viciados e o sentimento de abandono enfrentado por eles. Mais do que uma história de heróis, Snowbirds don’t Fly era um manifesto a respeito das falhas da “guerra as drogas” e do tratamento dado a viciados.

Mudando o tom


Longbow Hunters: uma virada para
o realismo. 
O próximo grande passo para a caracterização do arqueiro viria em 1987, sob arte e roteiro de Mike Grell. A minissérie “The Longbow Hunters”, que deu uma roupagem mais “sombria” ao personagem, incluindo o uso de força letal contra traficantes de drogas que torturaram Dinah. Espelhando questões políticas novamente, o grupo de traficantes enfrentado pelo herói e pela misteriosa arqueira japonesa Shado eram parte de uma operação da CIA para vender armas para o Irã de forma a financiar guerrilheiros na Nicarágua. Grell deu outra leitura para a origem, reescalando Queen como um hedonista que após naufragar na ilha, toma o combate ao crime como uma forma de evitar suas responsabilidades.


O tom “soturno” e “violento”, muito parecido de fato com o da série de TV (e que evitava o nome “Arqueiro Verde”) se manteve até 1993, com a saída de Grell. Essa temporada “madura” focada em crimes “convencionais”, envolvia pouca interação com super heróis, e contava com um elenco próprio de policiais, agentes do governo e outras figuras “mundanas”. A fase de Grell viu também o nascimento de um dos filhos de Queen, Robert, nascido de quando o herói foi estuprado por Shado. Kelley Puckett escreveu outro outro filho, Connor Hawke, o segundo arqueiro verde, em 1994.


Pós Zero Hora Oliver Queen foi atomizado, trazido de volta a vida, teve amnésia e outras tramas típicas de super heróis antes de sua última grande reinvenção, sob as mãos de Judd Winnick. De ativista, Oliver passa para político, sendo eleito prefeito de Star City. Porém um escândalo força o herói a renunciar à prefeitura. Em 2007, Andy Diggle e Jock apresentam outra versão da história de origem, em que Queen é um ativista milionário lançado ao mar por um grupo de contrabandistas. A série de Winnick se encerra com Queen pedindo Lance em casamento - o que levou a múltiplas minisséries sobre o casal.

Como dá pra ver, ao longo dos anos o Arqueiro Verde se distanciou (e muito) de sua origem como "Batman Paraguaio". Ironicamente, o herói socialmente consciente e ligado intimamente aos movimentos sociais carece da proibição de matar que marcou o Batman ao longo de toda sua publicação. Talvez por não ter um código moral tão "absoluto" quanto o de Wayne. Talvez por não temer tanto que vá se perder caso essa linha seja cruzada. Ou mais provavelmente, por ser caracterizado como muito mais humano e falho do que o hiper focado cavaleiro das trevas.

Após isso, Queen passou por toda a gama de esquisitices da DC: foi morto, seu cadáver foi revelado como um sósia, transformado em um Lanterna Negro, fez parte da abismal série Cry for Justice (que viu o herói cometer assassinato como “vingança” por um atentado, e abandonar a Liga da Justiça), e ao fim de tudo, foi completamente repaginado como parte do Novo 52, em 2011. Esta versão do herói ignora absolutamente tudo que eu escrevi aqui, e algum outro dia eu falo dela. Até por que, honestamente, eu li quase nada do Arqueiro pós Flashpoint. Da mesma maneira, outra hora eu falo melhor sobre sua versão televisiva.


Um comentário:

  1. outra influencia no Arqueiro foi a interpretação do Errol Flynn em The Adventures of Robin Hood (1938) na fase do Neal Adams, o mesmo aconteceu com o Fandral da Marvel e uma penca de outros

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