Algum tempo atrás eu fiz um artigo sobre o poder da representação icônica e da imagem idealizada como força positiva no personagem de Optimus Prime, na maneira como ele é retratado nos quadrinhos da IDW. O assunto hoje é o mesmo - mas na maneira como essa idealização e consequente culto a personalidade pode - e muitas vezes é - uma força negativa.
Essa força é uma velha conhecida de ditaduras, cultos, milícias e “megachurches”: a noção do “grande líder” como alguém “maior que a vida”, um homem entre os homens, um profeta ungido pelos deuses. São maneiras eficazes de catalisar a força das multidões ao redor do “herói”, estabelecendo alguém ao redor do qual as massas se congregarem - e a quem obedecer. Assim, ao mesmo tempo que essa devoção e essa imagem mítica pode exaltar seus seguidores, ela também pode levar a população a atos que não cometeriam normalmente, contanto que pensem que esses atos são em nome do “líder” ou do “messias”.
Donald Trump: um dos casos mais recentes - e preocupantes. |
As grandes ditaduras do século XX se basearam nesse culto a imagem pessoal: Hitler como “o Führer”. Mao Zhedong era “o grande líder”. Stalin sistematizou o culto a si próprio e a Lenin na União Soviética. A dinastia Kim da Coréia do Norte se estabeleceu como pseudo divindades. No Turcomenistão, em 2002, o presidente Saparmyrat Nyýazov se deu o título Turkmenbasi, o “pai dos turcomenos” para estabelecer uma ligação simbólica de paternidade com seu povo - repetindo o discurso do sultão Ataturk, o “pai dos turcos”. Muamar al Ghadaffi, por sua vez, gerenciava sua imagem e seu nome com afinco. Hoje, os senhores da guerra de estados falidos como Afeganistão e Somália vivem de títulos grandiosos ou misteriosos para criar uma aura de misticismo e temor ao redor de si - e da mesma maneira, Abu Baqr Al-Baghdadi se deu o título de Califa, para dar legitimidade a sua tirania, fazendo dele “mais do que um homem comum” e “o sucessor do profeta”.
Da mesma maneira, as monarquias e bandos de guerra vivem disso - de estabelecer seus regentes como dignos de adoração por um direito “inato”, um mandado divino que colocasse os reis acima dos homens comuns. Os imperadores do Japão e os Faraós do Egito se sustentavam na noção de que descendiam diretamente dos deuses. Na China, incontáveis vidas foram perdidas em nome da posse do Mandato dos Céus, o símbolo do poder imperial. Ghenghis Khan, por sua vez, abandonou o nome Temuchin para ser o “Grande Líder” ao redor do qual as tribos mongóis se unificaram.
A política contemporânea não tem carência dessas figuras, sejam na extrema-direita, como o verborrágico Donald Trump, o político francês Jean-Marie Le Pen ou o "mito" Jair Messias Bolsonaro, ambos sustentados por um misto de carisma pessoal e discurso de ódio, ou na esquerda, como é o caso do ex-presidente Luís Inácio "Lula" da Silva, infinitamente mais popular e adorado que o seu partido.
Tá, mas e a ficção, onde entra?
O Imperador Deus, de Warhammer 40,000: Um cadáver em um trono de ouro |
Desnecessário dizer que o assunto foi tópico farto para a ficção e a mitologia. Arthur Pendragon era o legítimo regente da Inglaterra e de Camelot não por conquista, apoio ou competência, mas por profecia. Na série Duna, de Frank Herbert, Paul Atreides rapidamente e involuntariamente cria um culto fanático a sua pessoa, vista como o Messias, o Kwisatz Haderach. Sua irmã, Alia, tenta gerar um culto a si mesma com títulos pomposos como Madinato, e seu filho, Leto II, é reverenciado como o “imperador deus”. Em Harry Potter, Tom Riddle demonstra entender do poder que essa imagem tem, abandonando seu nome “mundano” em favor de um mais “poderoso”: Voldemort. Enquanto outros são adorados, Voldemort gera poder ao ser temido, e seu status como “aquele que não deve ser nomeado” faz dele algo “maior que a vida”. O indivíduo não importa - apenas o mito. O mesmo culto visto em Duna dá as caras no wargame Warhammer 40,000 e o Imperium, um estado tirânico devotado ao “Imperador Deus” e sua grande cruzada. Enquanto isso, o verdadeiro imperador-deus definha entre a vida e a morte, vendo a humanidade trilhar o caminho oposto ao que almejava.
Nos quadrinhos não é diferente. Bruce Wayne construiu um mito ao redor de si como o Batman, para controlar Gotham pelo medo. O lado positivo disso já foi explorado em obras como Dark Knight Returns e Batman Incorporated - em que a figura do Batman inspira cidadãos comuns - enquanto o lado negativo foi visto no filme The Dark Knight e seus vigilantes inspirados pelo morcego, quando estes são apenas mais uma fonte de crimes em Gotham. Steve Rogers desaparece ante a figura do Capitão América - figura que já serviu para canalizar o que há de pior no patriotismo americano. Os vilões Apocalipse e Darkseid, por sua vez, são adorados como deuses - merecidamente, no caso de Darkseid.
O Grão Diretor. |
Os grupos de terroristas de quadrinhos se centram no poder do culto a personalidade. Seus líderes tem nomes e discursos pomposos como “Madame Hidra”, “O Grão Diretor” e “Serpente Suprema”, assim como seus equivalentes reais na KKK tem “magos supremos” e “grão ciclopes”: esses líderes estão além dos meros peões da organização. São títulos que permitem criar uma imagem de um “líder eterno”, imortal e intocável, destinado ao comando. São mitos, “heróis” e profetas.
E a esta altura você deve estar se perguntando o que isto tem a ver com Optimus Prime. No texto citado no primeiro parágrafo, eu falei sobre como esse ícone era inspirador - e como ia além da figura de Orion Pax, que morria simbolicamente para que Optimus Prime existisse. Agora, assim como os quadrinhos da IDW o fazem, trato dos aspectos negativos dessa imagem. Em Cybertron, isso se dá primariamente na forma de Primus Apotheosis, uma psicose que afeta 2% de todos os cibertronianos: uma obsessão em ser Optimus Prime.
Relevante: o título do arco de estória remete à revista anterior, All Hail Megatron. |
Mas agora, após os eventos de Combiner Wars, Optimus tem que lidar com um aspecto pior: ser visto e adorado como uma espécie de messias destinado a levar a raça cibertroniana a uma nova Era de Ouro. Assim como Paul Atreides, Prime está diante de uma encruzilhada em que todos os caminhos levam a uma guerra santa em seu nome - e suas tentativas de moldar seus seguidores em uma força para o bem podem resultar em desastre. O que virá disso, segue nas páginas da revista antes chamada Robots in Disguise, agora Transformers Vol. 2, e deve causar impacto nas outras publicações, e já começou a causar choque: a anexação da Terra como uma colônia cybertroniana, ironicamente para evitar uma invasão cybertroniana.
É um dilema entre a preservação dos seus ideais (definidos pela expressão Liberdade é o direito de todos os seres sencientes), os sacrifícios exigidos "em nome da paz" - que neste caso, como consequência da guerra, ameaçam deflagrar outra guerra afetando quem nada tem a ver com o conflito - e as expectativas sociais quanto ao mesmo heroísmo que tanto serviu como algo positivo anteriormente: Optimus é "o Prime Vivo" e certas coisas são esperadas dele por conta disso. E da mesma maneira que ocorre com tantos outros personagens... pessoas estão dispostas a dar suas vidas por conta desa idolatria.
Na revista paralela à Transformers, More than Meets the Eye, Megatron tem lidado à sua maneira com os efeitos do culto que se desenvolveu em torno dele. Como eu já havia coberto anteriormente, Megatron é um exemplo perfeito de como o radicalismo pode distorcer um ideal e levar a um fanatismo violento. O melhor exemplo do poder corruptor que a figura do fundador do movimento Decepticon é sem dúvidas o líder da "Divisão de Justiça Decepticon", Tarn - que após a "conversão" do seu "herói" ,se dedica à morte do seu outrora ídolo - justamente para evitar que o "ideal" e o "mito" se corrompam.
Assim como bons líderes e símbolos podem exaltar seus liderados, levando-os a feitos maiores do que conseguiriam normalmente, também podem ser uma força destrutiva inigualável. Boa retórica, um discurso convincente e carisma podem levar as pessoas a atos que não teriam a disposição - quer tivessem o ímpeto para isso ou não - com consequências desastrosas. Assim como podem justificar atos hediondos (como as medidas de cerceamento de liberdades em países árabes ou em Israel) sob o argumento de que "são necessárias para combater o inimigo".
Essa questão é muito bem frisada repetidas vezes ao longo do texto das duas revistas em questão, mas poucas vezes com tanta força quanto em More than Meets the Eye #52 (The Dying of the Light part 3: Your Fierce Tears), com o seguinte discurso de Tarn para seu "herói":
"Você quer falar de vidas desperdiçadas? E quanto à todas as pessoas que morreram seguindo suas ordens? Os limpadores de estrada e os transportadores. Os mineiros! Todos aqueles que morreram à serviço de um futuro que você prometeu trazer? Eles desperdiçaram suas vidas? Eu desperdicei a minha? Olhe ao seu redor, cada flor representa uma vida que você deu fim - uma morte pela qual tem responsabilidade plena. Você pensa que são todas de Autobots?"
Resumindo a questão dado que o texto já está bem longo, grandes líderes, messias e "heróis" são uma influência perigosa: assim como podem ser uma força pelo bem geral, podem ser o impulso que falta para que atrocidades sejam cometidas. Muitas vezes, são as duas coisas ao mesmo tempo. E a ficção científica sabe muito bem como lidar com isso, por mais que tenha uma estranha paixão por esse tipo de personagem, por vezes uma paixão acrítica.
Seu texto realmente abriu meus olhos e me fez pensar sobre isso . É bom ver assuntos assim serem discutidos na ficção popular .
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