Nagai e sua criação mais famosa: MAZINGER Z. |
Todo fã de quadrinhos japoneses que se preze sabe quem foi Ozamu Tezuka, o “pai” dos quadrinhos e desenhos japoneses. Criador de obras memoráveis como A Princesa e o Cavaleiro, Astro Boy, Phoenix, Kimba o Leão Branco e Blackjack, Tezuka certamente merece o respeito que tem - e não só por ter fundado a indústria de quadrinhos japonesa como a conhecemos.
Mas outro nome extremamente importante para os quadrinhos nipônicos permanece desconhecido fora do Japão. O homem que é o Jack Kirby para o Joe Shuster de Tezuka. O homem que ousou ir onde os quadrinhos japoneses nunca iam. Que fazia o impossível e o implausível darem certo. Que acumulou mais obras terríveis e mais obras primas que a maioria dos autores fizeram em toda sua vida. O homem que fundou (e depois escrachou) gêneros inteiros: Go Nagai.
E sua obra prima: Devilman |
Eu já falei de Go Nagai uma vez antes, quando escrevi sobre seu Magnum Opus, Devilman. No entanto, a importância de Go Nagai e a amplitude de sua obra vão muito além de Devilman. A melhor maneira de defini-lo é em comparação com Tezuka: se Tezuka é o “pai do mangá”, Nagai é o tio que dá os presentes que o pai não gosta.
Ou seja: enquanto Tezuka e companhia criaram o mangá como forma, Nagai foi quem deu os elementos de violência e erotismo que tantas vezes marcaram a indústria. Sem o "tio Go" é possível que não teríamos a onda de OVAs ultra violentos dos anos 80 (cujos autores foram confessamente influenciados pelo gordinho bonachão); não teríamos a abundância de fanservice que hoje domina a indústria (e talvez isso fosse algo positivo...); e não teríamos vários dos gêneros mais populares da animação e dos quadrinhos japoneses.
Violence Jack: possivelmente o Mangá mais violento da História. Certamente o mais violento de sua carreira. |
O começo de carreira na comédia.
Mudando a cena dos mangás
Nagai até chegou a escrever alguns títulos especificamente para o mercado ocidental, releituras de suas obras mais famosas para o gosto "americano". Nenhuma dessas ideias fez muito sucesso, a mais bem sucedida sendo Mazinger USA, que serviu de base para Z Mazinger (uma das muitas releituras do clássico). Também colaborou no roteiro da sequência de Vingador Tóxico (da lendária Troma Films), onde fez uma ponta - o filme foi um desastre...
Expandindo os limites da forma
Em mais de quarenta anos de carreira, Nagai continua fazendo o que faz de melhor. Ainda hoje ele trabalha em mais sequências de Mazinger e Devilman, mais obras históricas e releituras malucas da mitologia, e mais comédias e séries de ação com uma pitada (ou um pote inteiro) de erotismo (como Mazinger Angels, uma releitura de Mazinger Z misturada com... AS PANTERAS?).
Claro, isso é um recorte muito superficial da carreira do "tio sacana" dos Mangás, mas acho que com esse breve recorte já se tem uma boa lista de leitura para acompanhar o trabalho dele, não? Go Nagai é de longe um dos mais versáteis criadores na indústria japonesa de entretenimento. É pouco provável que não haja alguma coisa na sua filmografia e bibliografia que não seja do agrado de qualquer um. Fica a dica.
Jun, a Virgem de Ferro: uma pornochanchada barata. |
Nagai é um artista único, capaz de ampliar os limites da forma de maneiras nunca antes pensadas, e de baixar o nível da forma, também de maneiras nunca antes pensadas.Para cada obra genial como o supracitado Devilman, Mazinger Z e o altamente experimental X Bomber, há uma bizarrice semi-erótica como Iron Virgin Jun, Hanappe Bazooka e Dimension Hunter Fandora ou um shlockfest como Violence Jack e Juushin Lyger (embora o nível dos dois seja completamente diferente, e a violência de Lyger seja primariamente no anime), e tudo isso se mesclando a comédias como Oira Sukeban (delinquente travesti) e Dororon Enma-kun (essa posteriormente reescrita como horror puro em Kikõshi Enma).
Nascido Kiyoshi Nagai em 1945, a paixão pela polêmica e a transgressão deu as caras no início da carreira, quando ainda era conhecido meramente como um autor de comédias baratas como Pansy-Chan. Em 1968, Nagai ainda não tinha nenhuma série em seu nome, quando foi convidado pela Shueisha para ser parte do elenco da sua primeira revista de quadrinhos: nada menos que a Shonen Jump. Sim: ele foi um dos primeiros nomes do que é hoje a principal revista de quadrinhos para garotos no Japão.
O controverso Harenchi Gakuen |
Tendo que criar uma série para a nova revista, a resposta veio na forma de Harenchi Gakuen (Escola Sem-Vergonha, ou Escola Escandalosa), o primeiro mangá erótico, o primeiro Hentai, e o primeiro mangá a causar um “escândalo moral” no Japão. A meta de Nagai não era o eroticismo, mas sim abordar o grau de vergonha que os japoneses tinham ao lidar com sexualidade. Em 1972, Nagai foi forçado a encerrar Harenchi Gakuen, sob o risco de ser preso por atentar contra a moral pública (sim, em 1972, era possível ser preso por escrever algo “imoral”). Sua maneira de lidar com as acusações de imoraidade foi encerrar o mangá com uma invasão da associação Pais e Professores, membros do governo e “guardiões da moral” à escola, que se encerrava com todos os personagens sendo mortos.
Leão Negro: palavras desafiam descrever esse misto de história de samurais, FC e sabe-se-lá o quê. |
Mudando a cena dos mangás
Cutie Honey: a primeira heroína de um mangá para garotos. |
Um eterno precursor, Nagai explorou os limites do simbolismo religioso em Maou Dante, e aprofundou e valorizou esse recurso em Devilman, e em seguida o jogou no lixo da história com Violence Jack. Praticamente criou o Mahou Shoujo como gênero “universal” em 1974 com Cutie Honey (Honey foi a primeira mulher a protagonizar um quadrinho para rapazes, e a primeira história do gênero a se destinar a um publico mais amplo do que “meninas entre os 8 e 12 anos”) e o ridicularizou com Kekko Kamen (que satirizava super heróis, garotas mágicas, romances colegiais, e tudo mais). Fez o gênero fracassado dos Super Robôs dar certo com Mazinger Z (um quadrinho que escreveu para “aliviar o stress), escarneceu as histórias de crime com Abashiri-Ikka (título motivado em parte pelo pânico moral contra Harenchi Gakuen), e deu uma roupagem contemporânea para o folclore japonês com Susano-Oh e Shutendoji.
Majokko Tickle: uma "garota mágica" tradicional. |
Não que tudo que fez tenha sido “transgressor” ou “inovador”. Enquanto outros autores se contentam em serem conhecidos por sua maestria de um gênero, Nagai quis tudo. Dominou a forma das garotas mágicas com Majokko Tickle. Muito de sua obra foi composta por séries semi formulaicas de robôs gigantes, como Gakeen, Grendizer e Koutetsu Jeeg. Porém mesmo onde Nagai não se arriscava, ele demonstrou maestria da forma e do gênero.
Gaiking, a Obra que a Toei roubou. |
Em 1970, visando manter os direitos autorais sobre sua obra, Nagai e o irmão fundam a Dynamic Productions, um dos primeiros estúdios autorais do Japão. A primeira obra alheia publicada diretamente com o selo da Dynamic foi Gakuen Bangaichi, do autor de Getter Robo, de Ken Ishikawa. Sem gráfica própria, o estúdio de Nagai intermediava a produção de quadrinhos com as editoras, e garantia o retorno devido aos artistas. Da mesma maneira, a empresa intermediou a produção de animações junto a Toei até 1976, quando a gigante de animação roubou um projeto de Nagai, a série Daikyu Maryu Gaiking, e a creditou a Akio Sugino, para evitar pagar royalties. Nagai cessou todas as colaborações com a Toei e travou uma batalha legal por mais de dez anos. Ao fim das contas Nagai foi devidamente indenizado, e a Toei teve que pagar royalties novamente com a releitura de Gaiking em 2005.
Dimension Hunter Fandora: um dentre muitos Sci-fis genéricos dos anos 80. |
Expandindo os limites da forma
Divina Comédia: um dos projetos mais "artísticos" de Nagai. |
Embora seja indiscutivelmente o rei da parte “trash” dos quadrinhos japoneses, Nagai abundou em projetos artísticos. Escreveu mangás históricos sobre o período Sengoku; publicou uma série histórica, Sharaku, sobre a transição do período Edo para o período Meiji (final do século XIX) pelos olhos de uma jornalista; Escreveu uma obra breve sobre Clara Schumann e Johannes Brahms; escreveu e ilustrou uma adaptação completa da Divina Comédia, de Dante Alighieri; Isso tudo enquanto produzia dezenas de séries de animação e quadrinhos em todos os gêneros. Parte da liberdade para tanto veio justamente de “ser seu próprio patrão”.
A experimentação de Nagai foi muito além dos mangás e animes. Nagai também experimentou com os limites da produção em TV e impresso; seu X-Bomber usou o “supermarionation” de Gerry Anderson (Thunderbirds) para uma série de super robôs - o projeto não partiu de Nagai, mas o resultado tem muito do seu toque. Antes disso, Aztecaser misturou tokusatsu com animação para criar um super herói lutador de luta livre. O herói de Jushin Liger inspirou um lutador de luta-livre - que por sua vez levou Nagai a produzir um filme onde o lutador vira o personagem que encarna no ringue (é um filme muito estranho).
Mazinger Angels. Sem comentários. |
Claro, isso é um recorte muito superficial da carreira do "tio sacana" dos Mangás, mas acho que com esse breve recorte já se tem uma boa lista de leitura para acompanhar o trabalho dele, não? Go Nagai é de longe um dos mais versáteis criadores na indústria japonesa de entretenimento. É pouco provável que não haja alguma coisa na sua filmografia e bibliografia que não seja do agrado de qualquer um. Fica a dica.
Olá amigo, estava procurando por artigos confiáveis sobre o manga-ká Go Nagai e acabei caindo meio que de paraquedas no seu blog, poderia indicar algumas das fontes que usou para fazer essa fantástica matéria, estou escrevendo uma monografia sobre animês e propaganda ideológica, grato. :)
ResponderExcluirÓtima matéria!
ResponderExcluirSó uma ressalva: Go Nagai não criou o gênero garota mágica. Ele surgiu um pouco antes com "Himitsu no Akko-Chan" e com "Sally the Witch", que foi inspirado no seriado "A Feiticeira". O que o Go fez foi botar a ideia de garotas mágicas combatendo o mal (que antes elas só usavam os poderes pra se divertir) e inventou a transformação com strip-tease.
Excelente matéria!!! Go Nagai é daqueles artistas cuja obra me faz lembrar daquela frase de Janete Clair :"vale tudo, só não vale a indiferença".
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