segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Cage, Strange, Rand e suas raízes no exploitation.

Estamos quase na estreia da série de Luke Cage, mais um pouquinho temos a estreia de Doutor Estranho e um pouco depois começa a produção de Punho de Ferro. Não poderia haver hora melhor para falar de uma das formas mais mercadológicas de inclusão da história da indústria cultural: o “exploitation”. Se hoje os três personagens se destacam por si só (e Cage é um exemplo de crítica social no universo Marvel), em suas raízes a história era outra...


Para discutir Cage - e os outros dois, em termos diferentes, temos que voltar para os anos 70, quando tanto Luke Cage: Hero for Hire (posteriormente, Powerman) e Iron Fist tiveram sua estréia, respectivamente em 1972 e 1974. Stephen Strange, datando de 1963, é um caso LEVEMENTE diferente, mas que tem traços da mesma tendência mercadológica. E temos que olhar para um fenômeno cultural que marcou a década de 70: dois subgêneros dos filmes “exploitation”, a blacksploitation e a febre de filmes de artes marciais baratos.



Exploitation: representação (mambembe) por uns trocados


Three Headed Shark Attack: nem os tubarões escapam.
Como o nome sugere, os filmes de exploitation são formas de explorar nichos de mercado até o osso. O termo exploitation abarca uma gama imensa de gêneros cinematográficos, focando em grupos étnicos (o aqui tratado Blacksploitation, Jewsploitation, Mexploitation...), temas (Carsploitation, Nazisploitation, Spacesploitation), cinema B de certos países (Ozploitation, da Austrália, nos rendeu Priscila, a Rainha do Deserto e a série Mad Max) e formas decididamente bizarras de lucrar rápido com filmes baratos (Sharksploitation, com tubarões; Nunsploitation, com freiras - em geral em situações sexualmente sugestivas; as pornochanchadas brasileiras) a lista é longa...


Raramente dotados de qualidades artísticas ou de profissionalismo, esses filmes, produzidos em volumes imensos, visavam lucrar o máximo possível com aquele mercado antes que a bolha “estourasse”. Surgidos no ínicio dos anos 70, os filmes de Blacksploitation, voltados inicialmente ao “público negro urbano” são a vertente mais famosa desse fenômeno de mercado.





O gênero foi extremamente prolífico ao seu tempo - indo de comédias a dramas, de horror à ficção científica, de histórias judiciais a “filmes de cafetão”. Fosse o que fosse, tudo podia ser feito como um “filme negro”, sem se importar realmente com a inclusão deste mesmo público, e dando espaço para coisas imensamente criativas como The Thing With Two Heads (de 1972, em que um médico racista tem sua cabeça transplantada para o ombro de um negro acusado injustamente) e spoofs baratos como Blacula (uma releitura de Dracula com um Príncipe Africano como o vampiro, excelentemente relido como Vampire in Brooklyn, de 1975)





De certa maneira, esses filmes - em grande parte feitos para lucrar em cima de um mercado que não se via nos filmes mainstream - foram a porta de entrada para a representação do negro no cinema americano. Cheios de roteiros situados em vizinhanças pobres, com tramas sobre crime, desigualdade e miscigenação e lotados de insultos raciais, eram em partes iguais uma caricatura da vivência negra americana e uma representação do status social do negro. Para a NAACP, esses filmes reforçavam estereótipos sobre negros de forma nociva - e a migração dos clichês do Blacksploitation para outros gêneros cinematográficos ajudou a definir a percepção popular do negro nos EUA.


Black Dynamite: a ressurreição irônica do gênero.
O gênero teve uma ressurreição “irônica” e crítica, com filmes como Pootie Tang (2002), Undercover Brother (2002), Black Dynamite (2009), Full Clip (2004) e Django (2012). Filmes que bebem da estética e dos temas de Blacksploitation enquanto ou tiram sarro deles, ou os usam para crítica sócio-cultural.  


Tá, mas e as artes marciais?


Até agora só falei dos filmes negros desse fenômeno. Mas nos anos 70, outra minoria étnica americana se via representada no cinema por filmes que raramente tinham qualquer interesse em de fato representá-los: os asiáticos. Liderada pelo lançamento de Operação Dragão, em 1973, a febre do Kung Fu resultou em uma onda interminável de filmes chineses de artes marciais no mercado americano.


Essa onda era liderada por dois nomes: os Irmãos Shaw e Godfrey Ho. Enquanto os irmãos Shaw lançavam filme após filme de Hong Kong com dublagens subpar, Godfrey Ho, o Ed Wood do cinema de artes marciais, foi além: ciente da falta de interesse do público americano em protagonistas asiáticos, Ho “copiou e colou” CENTENAS de filmes para criar obras “excelentes” dos anos 70 até o final dos anos 90 - da qual a mais famosa é a série Ninja, estrelando um mal editado Richard Harrison inserido em cenas de mais de um filme.


Enquanto a febre do Blacksploitation girava em torno de uma visão estereotipada da vivência negra, a febre das artes marciais revivia o Orientalismo de décadas passadas com uma versão idealizada da ásia distante - e um desejo de trazer aquela mística e as lutas para o ocidente. O interesse na cultura asiática não era na cultura em si, mas em ninjas, mestres do kung fu e lutas voadoras. E é claro, todo mundo queria sua parte nessa febre.
The Black Fist: Artes Marciais vão de encontro ao Blacksploitation


Curiosamente, as duas febres se mesclaram em meados dos anos 70, com filmes como The Black Fist (1977), Cleopatra Jones (1973) e T.N.T. Jackson (1975), filmes que uniam a arte marcial barata (vulgo “Chopy Socky”, usando só a ação  e nada da filosofia) com os clichês do cinema exploitation negro.


A indústria de quadrinho quer o seu quinhão


É no meio dessas duas febres que o Punho de Ferro (Danny Rand) e Luke Cage surgem. Já dotado de revista própria e cheio de jargões, Cage surge em 1972 pelas mãos de Archie Goodwin e John Romita Sr. Com histórias em uma Nova Iorque mais tomada pelo crime que de costume, o vigilante negro (rebatizado de Power Man em sua 17ª edição) combatia o crime e prestava favores enquanto berrava coisas como Sweet Christmas e Where is my Money, Honey.


Cage não foi o único personagem do gênero nessa época: em 1975, Steve Englehart fez um dos maiores retcons da editora ao reescrever o passado de Sam Wilson, o Falcão, para o do protagonista do filme Superfly, sobre um traficante em “seu último negócio”, em um dos incidentes mais negativos ligados ao estilo (Wilson era, antes do retcon, um assistente social - fato que foi re-retconizado em 2014).  Na Marvel Premiere #21, outra personagem do gênero dava as caras: Misty Knight, criada por Tony Isabella e Arvell Jones. A personagem, uma detetive com um braço biônico, combinava as duas febres da década: Blackslpoitation e Artes Marciais.


Shang-Chi, o asiático: eternamente obscuro...
Já o Punho de Ferro, surgido na revista Marvel Premiere #15, era a segunda tentativa da Marvel de lucrar na febre das artes marciais. Criado pelo desenhista Gil Kane e o roteirista Roy Thomas, Rand era diferente da tentativa anterior, Shang Chi, o Mestre do Kung-Fu em duas características essenciais: Criado por Englehart e Jim Starlin, Shang Chi era um homem asiático e um mestre em artes marciais. Já Rand era um homem branco com poderes sobrenaturais advindos das artes marciais.


...ao contrário de seu sucessor branco...
Rand trazia traços claros de um personagem pulp, à moda do Fantasma, Tarzan e John Carter: o estrangeiro que dominava os meios dos nativos (da terra misteriosa de K’un L’un) melhor do que eles. Ao mesmo tempo, tinha mais apelo com o público americano do que um personagem asiático (um problema recorrente nessas febres por culturas "exóticas").


Fracassando sozinhos, a Marvel juntou os dois - com sucesso.
Em 1978, com as duas febres em baixa, os dois personagens tiveram suas vendas seriamente prejudicadas, e a Marvel decidiu salvá-los explorando outra febre do cinema: os filmes de buddy cop, gênero na época em crescimento (e que explodiria no começo da década seguinte com o imenso sucesso de 48 horas, em 1982). O gênero unia um “policial” (neste caso, um super herói) sério e outro “folgado” - aqui representados respectivamente por Cage e Rand - e jogava suas personalidades distintas uma contra a outra no desafio de trabalharem juntos. A DC teve sucesso em reaquecer as vendas do Lanterna Verde e o Arqueiro Verde fazendo isso em 1970, e a Marvel apostou na mesma medida criando Power Man and Iron Fist, título que durou até 1986.
Tyroc: uma caricatura racial...


A DC, por sinal, também caiu nas duas febres, com personagens como o horrendamente mal pensado Tyroc (1976) e o memorável Black Lightning (1977), além do proposto mas felizmente não produzido Black Bomber no lado negro da equação, e o pré-existente (de 1966) Karate Kid, revivido em 1976 com revista solo no lado das artes marciais (além de um foco ampliado no tema nas revistas de vários heróis - e uma breve fase da Mulher Maravilha entre os anos 60 e 70, onde a personagem perdeu os poderes e focou em artes marciais sob o mestre I Ching.


Mas o que o Doutor Estranho tem a ver com isso?


Uma palavrinha: Orientalismo. Assim como o Punho de Ferro é fruto da visão idealizada que a indústria cultural tinha do oriente nos anos 70, o Feiticeiro Supremo, criado por Steve Ditko e Stan Lee, é fruto da visão idealizada que escritores ocidentais tem do oriente.



Muito se disse sobre o personagem ser “centrado em misticismo oriental” e que portanto o doutor deveria ser interpretado por um ator asiático, e não por Benedict Cumberbatch. Mas a questão é... não tem nada de “asiático” ou “oriental” no misticismo do Doutor Estranho: assim como K’un L’un não representa nenhuma sociedade asiática (sendo um hodgepodge de tradições distintas e incompatíveis), o misticismo do Doutor Estranho é um frankenstein de tradições místicas filtradas pelo olhar ocidental, sem preocupação se elas fazem sentido juntas.

Mas o que é orientalismo? Bem... orientalismo está para a arte e a literatura como o Exploitation está para o cinema: é a visão idealizada e irreal que artistas, escritores e designers ocidentais tem do “Oriente” - do Oriente Médio ao Japão, passando pela Índia, a China e o Tibet. Igualmente, o termo se refere a atitude paternalista que o ocidente tem com relação ao oriente, mas o que importa aqui é a visão romantizada.


Price como o feiticeiro supremo: coincidência?
Sim, Stephen Strange vai para o “extremo oriente” para se curar, onde se torna o Feiticeiro Supremo, e sim, ele estuda sob um mestre Tibetano, o Ancião. Mas nada do que está nas revistas dele é “misticismo asiático”: a presença do Tibet nas revistas do personagem se deve ao quão “exótico” era o país, sob os olhos do público graças ao sucesso de literatura barata focada “nos místicos do Tibet”.


Rampa: o Lama do farsante Hoskins tinha os
mesmos dons sobrenaturais que o Ancião
e outros místicos da época.

O sucesso do personagem em si bebia do sucesso de duas figuras: o ator americano Vincent Price (do qual copiou sua aparência e o título de “Feiticeiro Supremo”, do personagem de Price em O Corvo, de janeiro de 1963) e o farsante “tibetano” Lobsang Rampa, cujos livros trouxeram “o misticismo tibetano” aos olhos do público ocidental. Rampa era na verdade o inglês Cyrill Hoskins, que jamais esteve no Tibet - mas cujo Lama inventado tem grande similaridade com O Ancião dos quadrinhos do feiticeiro supremo. Se Ditko copiou a dupla ou não, ou se simplesmente bebeu do mesmo Zeitgeist que o diretor Roger Corman e o farsante Hoskins, não faço ideia. Vale lembrar que o Senhor Destino surgido na DC em 1940, por sua vez, tinha poderes mágicos "do Egito" - o go-to dos anos 30 e 40 para misticismo, inspirado pelas descobertas arqueológicas na região.

Doctor Fate: tão egípcio quanto bala de banana.


Ironicamente, a caricatura do Tibet de Ditko e Lee hoje é vista como representatividade - e levou fãs do personagem a exigirem um Strange asiático, assim como há fãs de Rand - o “poderoso branquelo” - exigindo que ele seja chinês. Firmes na posição de que Strange representa a filosofia e a tradição tibetana, ignoram sua origem orientalista e - por que não admitir - inocentemente racista.

Tarzan: fruto do mesmo fascínio com
o "exótico" - no caso com a "África
mais profunda". 
Strange, Cage e Rand: todos nascidos de tentativas mercadológicas de explorar nichos étnicos e culturais da forma mais cínica possível. Hoje são muito mais do que isso. Strange gerou todo um universo místico seu, sem depender da caricatura orientalista de sua origem; Luke Cage virou uma máquina de crítica social e um dos personagens que mais se desenvolveu para além de suas raízes; E Danny Rand... é engraçado? Rand nunca se livrou de suas raízes no Kung-fuxploitation e no Orientalismo. E me atrevo a dizer que nem tenha como, assim como não há como desprender Tarzan da mentalidade colonialista. A fase de Matt Fraction e David Aja (2006 - 2009) abraçou essa raíz Pulp e fez dele um herói generacional como o Fantasma. Não dá pra consertar o problema, mas dá pra trabalhar bem com ele.

3 comentários:

  1. Cara, adoro os seus artigos. Mas não vejo nenhum problemas nesses filmes ''vazios'' ou totalmente estereotipados

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    1. Então... isoladamente, esses filmes não são ruins, perversos ou um problema: é o padrão gerado por eles que é problemático, graças ao poder da mídia de massa de gerar, validar e consolidar representações da realidade. Hoje o problema não é tão grande, mas leve em conta: os anos 70 foram a primeira década em que os negros nos cinema americano saíam do papel de coadjuvantes (geralmente, como subalternos) para serem protagonistas em doses consideráveis - mas os papéis de protagonista nos quais eram vistos eram de criminosos, prostitutas, traficantes, golpistas ou policiais corruptos que tomavam a justiça nas próprias mãos. E isso, ao ser repetido incessantemente, consolida visões de que é a isso que a vida do negro urbano se resume: drogas, prostituição, crime e violência.

      A mesma coisa acontecia de forma diferente com asiáticos: como praticamente toda a representação de asiáticos na mídia ocidental era composta por misticismo e artes marciais, se consolidou por muito tempo (e quando digo muito tempo, digo: até hoje tem quem veja assim) a ideia dos países asiáticos como "terras de sabedoria mística". E é aí que está o problema: na repetição desses clichês, que não são tão racistas quanto "o perigo amarelo" ou o "mandingo", mas justamente por isso tem um impacto tão grande no longo prazo: por parecerem inofensivos.

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  2. o livro A Outra Face de Hollywood do Antonio Carlos Gomes de Mattos fiquei sabendo que o cinema ético existe desde os primórdios do cinema, antes do Blaxploitation, exista os race films ou race movies, existiam até westerns protagonizados por negros, teve umas experiências em quadrinhos, como a revista All-Negro Comics e Lobo da Dell Comics, de acordo com o Super Black: American Pop Culture and Black Superheroes do Adilifu Nama, o plot do Luke Cage veio do filme Cool Hand Luke, embora o personagem não seja negro, sim, o Punho de Ferro tem um lado pulp, o Thomas afirma que se inspirou num filme de kung fu e no Amazing Man, um herói da Era de Ouro criado pelo Bill Everett que parece saídos pulps, a Marvel tem sua própria versão do Amazing Man (que é de domínio público lá) e usou nas histórias do Rand tinha também o Green Lama, que saia em pulps e foi pros quadrinhos, o Dr. Estranho tem o nome tirado de um outro herói antigo (que Alan Moore resgatou em Tom Strong, o nome Doct saiu por causa da Marvel), mas também num programa de rádio chamado Chandu, Stan Lee tirou a ideia de nomes como olho de Agamoto e e congêneres.

    https://en.wikipedia.org/wiki/Amazing-Man_(Centaur_Publications)

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