sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O colonialismo na construção do herói




Não creio que seja muita novidade para quem gosta de HQs que a base dos quadrinhos de super-heróis é a não tão boa, mas velha, literatura pulp, livrinhos baratos vendidos em bancas e livrarias de pequeno porte no inicio do século passado. Mas tenho minhas dúvidas se a maioria dos leitores compreende o subtexto colonialista da grande maioria dos heróis pulp - e como isso afetou a industria de quadrinhos até hoje.

Levem em consideração - a literatura pulp teve seu auge nas décadas de 1910, 20 e 30 - os anos finais do colonialismo europeu.  Como colocado pelo site tvtropes, o que imperava na literatura de ação, fantasia e ficção científica do inicio do século XX (assim como por todo o século XIX) é o "Mighty Whitey" - o poderoso branquelo -o homem branco anglo-saxão protestante, transplantado para um ambiente selvagem onde representa a "luz da civilização", e são mais bem dotados, talentosos e bem, tudo, do que os nativos.

Talvez os melhores exemplos deste tipo de personagem na literatura pulp sejam os dois grandes heróis de Edgar Rice Burroughs - John Carter de Marte, e Tarzan, o rei dos macacos. Transportado para Barsoom, o veterano da guerra civil John Carter é mais forte e ágil que os marcianos nativos, sua mentalidade "de um cavalheiro da Virginia" lhe dá vantagem sobre o senso de honra cego dos Barsoomianos, ao mesmo tempo que lhe torna MAIS honrado. Essa mentalidade superior lhe permite conquistar "a mulher mais bela de marte, Dejah Toris de Helium", e lhe concede o título de Dejak dos Dejak, senhor da guerra de Marte - e a liderança de todo o planeta. Da mesma maneira, perdido na selva quando bebe, o nobre inglês John Clayton III, Lorde de Greystoke, é criado pelos grandes macacos Magnani - e adulto, se torna o lider da tribo de gorilas, superando todo o bando em praticamente todos os aspectos.

Embora sejam um caso de "superioridade do homem civilizado", tanto Carter quanto Tarzan rejeitam a hipocrisia da Terra ou do homem branco. Esse padrão pode não ser tão óbvio atualmente, mas não é preciso olhar muito para encontrar um caso dele nas HQs: o Super Homem. Afinal, Kal-El vem de um mundo mais civilizado, e em todos os aspectos o herói é melhor do que os humanos - e assume, como Carter e Tarzan, um cargo de protetor, e de certa maneira lider da humanidade. Embora sua superioridade venha de sua origem Kryptoniana, o Super Homem rejeita a hipocrisia de Krypton, assim como Tarzan rejeita a hipócrita sociedade européia - mas não deixa de ser um exemplo de como "o civilizado" é superior.

Outro caso disso é o Punho de Ferro - o jovem americano adotado por monges asiáticos de K'un L'un e supera todos os outros estudantes, recebendo poderes místicos no processo e virando o maior guerreiro da ordem. Ainda mais descarado é o caso do Wolverine, que conseguia ser um japonês melhor que todos os personagens japoneses da Marvel, assim como um índio melhor que todos os outros - e que supera praticamente todas as pessoas com quem lida.

E temos o exemplo reverso no Pantera Negra, vindo da nação oculta de Wakanda, o herói incorpora esse conceito em reverso: o Pantera é mais moral, mais correto e mais tudo por NÃO ser o ocidental branco. Mas essa reversão é tão nociva culturalmente quando o caso padrão, e tem implicações horrendas conforme o roteirista Reginald Hudlin foi detalhando mais a utopia que era Wakanda - em velhos tempos um país avançado, mas com problemas reais, nas mãos de Hudlin Wakanda não tinha problemas sociais, e detinha entre outras coisas a cura para o cancer - que não compartilhava com o mundo "pois os segredos de Wakanda não são para o homem branco". Quem se lembra da forte amizade entre T'Challa e Mar-Vell vai ver o problema: T'Challa deixou seu amigo morrer de câncer porque ele era branco (quando na verdade era azul). E Hudlin esperava que isso fosse visto como algo bom.



Essa forma de narrativa, em que o "poderoso branquelo" rejeita sua origem, mas ao mesmo tempo reafirma sua superioridade frente ao "selvagem" é bastante comum no cinema - um caso recente é o épico Avatar, de James Cameron - no qual o humano Jake Sully consegue em pouco tempo unificar todas as tribos dos Na'vi, domando o terrível Toruk - algo que só havia sido feito quatro vezes em toda a história dos Na'vi. Essa narrativa toda já havia acontecido em Duna, de Frank Herbert - onde o nobre Paul Atreides se adapta melhor ao hostil planeta Arrakis do que o Fremen que habitam o mundo desértico a gerações, e se torna seu líder e messias.

Por mais que essa seja uma forma narrativa clássica e muito popular, há um problema muito grave com ela: é nacionalista, ufanista e preconceituosa. E muitas vezes, uma leitura superficial pode fazer com que elas se passem por crítica a sociedade moderna, ignorando o detalhe de que a unica coisa que leva o "poderoso branquelo" a chegar a seu estado moralmente superior ao "homem civilizado" é a sua capacidade superior ao selvagem, e ver além das limitações do "primitivo". Uma mentalidade um bocado preconceituosa - contra os dois lados da questão, por achar que os "selvagens" são inferiores, e que o "civilizado" é moralmente corrupto.  Não digo que essa narrativa seja inerentemente ruim - só que tem que ser lida com cuidado.

3 comentários:

  1. Neste tipo de livros/filmes a leitor tem de se abstrair dessa situação, a não ser que seja demasiado absurda e ostensiva. Nesse aspecto eu incluo o Cap América. Quando cresci deixei de ler Cap America porque comecei a perceber o inqualificável hipocrisismo norte-americano assente nesse herói! Demasiado ostensivo...
    Quanto ao resto temos saber separar águas e discernir o que é naive daquilo que é pernicioso!
    ;)

    abraço

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    1. Olha Nuno... como alguém que fez a sua MONOGRAFIA em cima do Cap, eu posso dizer que o Steve não cai dentro desse quadro, porque desde os anos 70 a enfase mor do personagem é "isso é que vocês DEVERIAM ser" e "WTF ARE YOU DOING AMERICA!?". Ele é um personagem de crítica política, salvo quando cai na mão de um escritor ruim, ou no caso do Marvel Ultimate (porque o Cap Ultimate sim, é AMERICA FUCK YEAH! READY TO SAVE THE MOTHERFUCKING DAY NOW! E outras sandices).

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  2. Acho pior que as sandices do Universo Ultimate (que existe para ser diferente), as *&%¨&%¨que Bendis e cia fez com personagens, especialmente os Vingadores, matando, endoidando, fazendo um lutar contra os outros... como se a personalidade deles não estivesse definida.

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