À cada mudança progressista no status quo de quadrinhos de super heróis, uma certa reclamação reverbera entre as redes sociais: a de que “nos velhos tempos” política e quadrinhos de super heróis não se misturavam. Que os quadrinhos eram “isentos de ideologia” e “apolíticos”. Um dos mais notáveis exemplos dessa reclamação é um texto muito divulgado de Darin Wagner, “How Liberalism may be hurting comic book sales”. Mas será que essa mentalidade confere com a realidade?
Para responder de forma curta, não. Quadrinhos de super heróis nunca foram apolíticos, assim como ficção científica (onde esse choro recentemente deu as caras) jamais foram desconectadas da política do mundo real. O site quadrinheiros já escreveu sobre isso. Mas olhemos isso de uma forma um pouco mais longa e aprofundada.
A Era de Ouro e “Os outros homens de uniforme”.
Comecemos pela “era de ouro” dos quadrinhos de super heróis, o surgimento do gênero, entre o fim dos anos 30 até o fim da segunda guerra mundial. O posicionamento das histórias do gênero mudou muito nesse período, mas em ponto algum foi “apolítico”.
O primeiro personagem do gênero, Super homem, criado em 1938 pelos filhos de imigrantes Jerry Siegel e Joe Shuster, era a “aspiração máxima da humanidade”. Seus inimigos eram não apenas criminosos comuns, mas primariamente políticos corruptos e lobistas. O foco de suas ações não era “o combate ao crime”, mas sim às “injustiças sociais”. O “escoteiro” tão conhecido atualmente começaria a surgir em 1939, quando a equipe criativa foi alterada; em 1943, os últimos traços da versão subversiva e revolucionária de Shuster e Siegel desapareceriam com a saída definitiva de Siegel, recrutado pelo exército.
O primeiro personagem do gênero, Super homem, criado em 1938 pelos filhos de imigrantes Jerry Siegel e Joe Shuster, era a “aspiração máxima da humanidade”. Seus inimigos eram não apenas criminosos comuns, mas primariamente políticos corruptos e lobistas. O foco de suas ações não era “o combate ao crime”, mas sim às “injustiças sociais”. O “escoteiro” tão conhecido atualmente começaria a surgir em 1939, quando a equipe criativa foi alterada; em 1943, os últimos traços da versão subversiva e revolucionária de Shuster e Siegel desapareceriam com a saída definitiva de Siegel, recrutado pelo exército.
Super Homem deu origem a dezenas de imitadores, vigilantes e “justiceiros mascarados”, cujo discurso pendia do combate a desigualdade social ao moralismo bíblico (tal qual o obscuro “olho que tudo vê”). Em grande parte, os Super Heróis recém surgidos eram reacionários, dedicados a combater “bandidos” comuns ou ameaças “sobrenaturais”.
Alguns se destacavam, no entanto. Em 1941, o psicólogo WIlliam Moulton Marston rompia com os padrões da indústria ao criar a Mulher Maravilha, a primeira super heroína, com um discurso para hoje machista, para a época feminista. Um dos mais notórios personagens dessa época, erroneamente chamado de apolítico*, era o Capitão América, dos também judeus Jack Kirby e Joe Simon, em 1940, e publicado em 1941.
Alguns se destacavam, no entanto. Em 1941, o psicólogo WIlliam Moulton Marston rompia com os padrões da indústria ao criar a Mulher Maravilha, a primeira super heroína, com um discurso para hoje machista, para a época feminista. Um dos mais notórios personagens dessa época, erroneamente chamado de apolítico*, era o Capitão América, dos também judeus Jack Kirby e Joe Simon, em 1940, e publicado em 1941.
Socando a cara de Hitler: um ato político. |
Não há nada de apolítico no Capitão América, criado antes dos EUA entrarem na guerra. Cada aspecto de sua criação é um ato político, um pedido pela entrada dos EUA no combate ao nazismo, em um período em que grande parte da população americana preferia não se envolver com a guerra, quando não apoiava os nazistas. Seu design e sua origem em si são um discurso contra o “ubermensch” nazista e contra a xenofobia que marca os EUA até hoje (e que era mais forte na época).
A capa de sua primeira edição pode parecer “banal” hoje, mas era o maior ato político dos quadrinhos americanos até aquele ponto: era uma declaração de guerra por parte da Timely, que explicitamente pintava um chefe de estado como o vilão. Enquanto isso, 85% dos americanos eram contra conceder refúgio aos judeus exilados da Europa.
"Capitão Marvel esmaga os japas". |
Após o sucesso do Capitão e a entrada dos EUA na Guerra, em 1941, o discurso do gênero mudou completamente. Símbolos patrióticos explodiram nas histórias de super heróis, e as aventuras que antes se restringiam as metrópoles americanas se espalhavam pelo mundo.
A popularidade do gênero explodiu - a DC Comics tinha, durante a guerra, cerca de 90% de sua biblioteca composta por quadrinhos de super heróis.
A popularidade do gênero explodiu - a DC Comics tinha, durante a guerra, cerca de 90% de sua biblioteca composta por quadrinhos de super heróis.
Enquanto isso, o governo americano viu potencial nos “outros homens de uniforme”: A pedido das forças armadas, os novos inimigos dos heróis desenhados eram os “chucrutes”, os “amarelos” e os “guapos”. Os super patriotas pediam pela compra de Warbonds, sucata, faziam propaganda de alistamento, anúncios de utilidade pública, entre outros “serviços sociais”. Qualquer coisa que os soldados fizessem para propagandear o esforço de guerra, os “outros homens de uniforme” também faziam. Ao fim da guerra, junto com os heróis patrióticos, surgiam grupos como Black Hawk, parte dos “quadrinhos de guerra” que se popularizariam nos anos 50 e 60.
A Era de Prata: omissão e conformismo
Ironia: odiado pelos fãs de super-heróis, o livro de Wertham levou a hegemonia do gênero. |
Como pode ser visto pela era de ouro, não há nada de “apolítico” no gênero desde sua origem. Nos anos 50, as coisas não mudaram muito. Sem um inimigo claro, Super heróis entraram em decadência após o fim da guerra, dando lugar a quadrinhos de horror e crime. Tentativas de emplacar super heróis dentro da nova retórica da Guerra Fria, como “Capitão América: Esmagador de Comunistas”, fracassaram. Entre 1945 e 1954 os super heróis estavam em decadência.
A salvação viria, ironicamente, com a publicação de Seduction of the Inocent, do psiquiatra alemão Fredric Wertham, em 1954. Wertham condenava os quadrinhos americanos como “literatura popular ruim” e via ligações entre os quadrinhos e a delinquência juvenil. Hoje condenada como promovendo uma “caça as bruxas”, a obra apontava a abundância de temas de violência, drogas e crime. Embora Wertham dedicasse parte de sua crítica a super heróis, em particular o subtexto homossexual em Batman e o bondage em Mulher Maravilha**, seu foco central eram as revistas que dominavam as bancas nos anos 50: crime, horror e mistério.
Wertham queria a instauração de um sistema de classificação indicativa e um sistema de controle por parte da indústria. Sua obra, no entanto, deflagrou uma onda de pedidos por censura e um subcomitê do Senado que resultaram na criação da Comics Code Authority no mesmo ano. Liderada por Charles F. Murphy, a entidade restringiu gravemente o conteúdo de histórias em quadrinhos, essencialmente restringindo o mercado a dois gêneros: super heróis, a especialidade da DC Comics, e quadrinhos adolescentes, domínio da Archie Comics - ambas forças dominantes na CCA.
A salvação viria, ironicamente, com a publicação de Seduction of the Inocent, do psiquiatra alemão Fredric Wertham, em 1954. Wertham condenava os quadrinhos americanos como “literatura popular ruim” e via ligações entre os quadrinhos e a delinquência juvenil. Hoje condenada como promovendo uma “caça as bruxas”, a obra apontava a abundância de temas de violência, drogas e crime. Embora Wertham dedicasse parte de sua crítica a super heróis, em particular o subtexto homossexual em Batman e o bondage em Mulher Maravilha**, seu foco central eram as revistas que dominavam as bancas nos anos 50: crime, horror e mistério.
Wertham queria a instauração de um sistema de classificação indicativa e um sistema de controle por parte da indústria. Sua obra, no entanto, deflagrou uma onda de pedidos por censura e um subcomitê do Senado que resultaram na criação da Comics Code Authority no mesmo ano. Liderada por Charles F. Murphy, a entidade restringiu gravemente o conteúdo de histórias em quadrinhos, essencialmente restringindo o mercado a dois gêneros: super heróis, a especialidade da DC Comics, e quadrinhos adolescentes, domínio da Archie Comics - ambas forças dominantes na CCA.
Com isto, os Super Heróis voltavam a ser a força dominante no mercado editorial dos EUA. Coletâneas de FC e mistério ainda existiam, limitadas gravemente pelo “código de ética”. Múltiplas editoras saíram do mercado devido a essas limitações, a mais notória das quais a EC Comics, de William Gaines. Após a censura racista de uma reimpressão de Judgement Day, Gaines se retirou do mercado de quadrinhos, fechou a EC*** e fundou a MAD, onde não estaria sujeito a esse controle.
Nos anos seguinte, as revistas de super heróis se dedicariam a histórias “inofensivas”, e a “tolice” da “Era de Prata” é um fenômeno bem conhecido e documentado. Histórias mais politizadas davam lugar ao Super Homem tendo que esconder sua identidade de Lois Lane, Jimmy Olsen virando um gorila, e Batman virando uma múmia. Essa é talvez a era mais “apolítica” dos quadrinhos, devido a uma opção consciente das editoras em ignorar os problemas do mundo real para focar em histórias infantis. Nem mesmo a propaganda política, que marcara os quadrinhos até os anos 50, existia no mundo idílico dos quadrinhos da era de prata. Política simplesmente não era um assunto.
Nos anos seguinte, as revistas de super heróis se dedicariam a histórias “inofensivas”, e a “tolice” da “Era de Prata” é um fenômeno bem conhecido e documentado. Histórias mais politizadas davam lugar ao Super Homem tendo que esconder sua identidade de Lois Lane, Jimmy Olsen virando um gorila, e Batman virando uma múmia. Essa é talvez a era mais “apolítica” dos quadrinhos, devido a uma opção consciente das editoras em ignorar os problemas do mundo real para focar em histórias infantis. Nem mesmo a propaganda política, que marcara os quadrinhos até os anos 50, existia no mundo idílico dos quadrinhos da era de prata. Política simplesmente não era um assunto.
A Marvel e a conexão com o real
Sinais dos tempos: os "vermelhos" eram inimigos padrão nos quadrinhos da Marvel. |
As coisas viriam a mudar nos anos 60, com trabalho de três nomes conhecidos da indústria: Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko. Juntando os restos da Timely Comics e da Atlas Comics, o trio deu uma nova cara aos quadrinhos americanos. Através de personagens como o Quarteto Fantástico, Hulk, Homem de Ferro e Homem Formiga, a política voltava aos quadrinhos, como nos cita o historiador de quadrinhos Mike Benson:
“No mundo dos quadrinhos do Super Homem, o comunismo não existia. O Super Homem raramente cruzava fronteiras nacionais ou se envolvia em disputas políticas. De 1962 até 1965, haviam mais comunistas [nos quadrinhos da Marvel] do que assinando o Pravda. Agentes comunistas atacavam o Homem Formiga em seu laboratório, capangas vermelhos surpreendiam o Quarteto Fantástico na Lua, e guerrilheiros Vietcongues disparavam contra o Homem de Ferro”.
Assim como humanizavam os quadrinhos de super heróis, dando um foco maior em sua vida civil do que nas “aventuras”, o trio reconectava o mito do super herói ao mundo. Não apenas o universo Marvel era uma continuidade coesa, em que cada revista afetava as outras, em maior ou menor grau, como dividia com o “nosso” mundo muitos de seus problemas.
Vilões comunistas eram frequentes na Marvel dos anos 60, especialmente nas histórias do Homem de Ferro. Ao mesmo tempo, o Incrível Hulk centrava-se nos abusos de poder do exército americano e os perigos da era nuclear. O Homem Aranha mesclava os dramas adolescentes com a violência urbana, e a retomada do Capitão América em Os Vingadores questionava o lugar do idealismo dos anos 40 no mundo moderno. Fosse em prol da direita ou da esquerda, as histórias da Marvel eram políticas.
X-Men; um princípio fraco para uma ideia forte. |
Mas foi com X-Men, em 1963, que a Marvel realmente “sacudiu” a cena de quadrinhos. De início o grupo era “só mais um” (e as primeiras histórias dos X-Men são sofríveis). Antes do fim da sua primeira tiragem, no entanto, o quadrinho passou a lidar com dois tópicos que, até então, eram tabu: o racismo e o holocausto. Antes uma desculpa preguiçosa para não ter uma história de origem, os mutantes viravam metáforas para minorias. Em 1978, Após quinze anos de publicação e muita insinuação, o líder da “Irmandade dos mutantes malignos” Magneto se revelava um sobrevivente do Holocausto. Mas minorias de fato demorariam a aparecer.
O posicionamento da Marvel era o completo oposto da DC. Onde a DC optava por se isolar da realidade e ignorar questões políticas e sociais, a Marvel fazia um discurso aberto. Ao escalar os “comunistas” como vilões, a Marvel tomava uma posição: eles eram os “caras maus”, nós somos os caras certos. É uma posição irônica: na maioria das questões sociais, a Marvel tradicionalmente adota uma posição mais à esquerda que a da DC - mas neste sentido, fora a primeira a abertamente escalar os “comunas” como os vilões****
A Era de Bronze e o fim dos semideuses
O Falcão: o primeiro herói afro-americano. |
No final dos anos 60, tanto a Marvel quanto a DC rompiam com a visão idílica de mundo que marcou o período anterior. Batman retomava suas raízes como um vigilante noturno. O Coringa começava a assumir sua psicose. A Marvel novamente inovava com os primeiros heróis negros, O Pantera Negra em 1966, e o Falcão em 1969. Na DC, por sua vez, a adição de minorias veio de forma desengonçada. Ao lado de personagens bem pensados como Black Lightning, em 1977, e Mal Duncan, em 1970, ainda tínhamos caricaturas racistas como Tyroc, em 1976, e a caricatura grotesca que era Egg Fu, de 1965. Personagens negros existiam antes - mas raramente com algo além de uma caricatura.
E não era um debate tranquilo e amigável. |
Mas nesse ínterim, na DC, Neal Adams e Dennis O’Neil cunhavam um dos títulos mais políticos que o gênero já teve: Green Arrow/Green Lantern, que pode muito bem ser resumido em uma longa série de debates sobre questões sociais disfarçados como revistas de super heróis. As discussões que tomavam as ruas partiam para as páginas dos quadrinhos.
Duas histórias se destacam desse interregno: Snowbirds Don’t Fly, de Neal Adams e Dennis O’Neil, e Green Goblin Reborn!, de Stan Lee e Gil Kane. Ambas violaram o “código de ética dos quadrinhos” para lidar de uma questão muito séria: drogas. Não apenas o tópico era tabu, mas muitos dos heróis da Era de Ouro tiravam seu poder justamente de... drogas. Não é uma questão de bem e mal, e a trama de Adams e O’Neill vai além do básico para tratar o vício como um problema social, não individual.
O fim do mito. |
Em 1973, as pequenas sacudidas que a Marvel deu na cena dos quadrinhos de super heróis atingiram seu máximo em The Night Gwen Stacy Died, por Gerry Conway. Pela primeira vez, uma personagem recorrente morria, e as coisas não eram resolvidas no final da edição. O herói fracassava, e a antes injusta perseguição ao Homem-Aranha pelo Clarim Diário parecia compreensível.
Decepcionado com o país, Steve abandona o escudo. Novamente, nada de apolítico. |
A morte de Gwen Stacy refletia a descrença americana em seu país e seus heróis, tema que se repetiria em Secret Empire, na revista do Capitão América. Com o país em meio aos escândalos de Watergate, nas páginas da revistinha o herói mor do patriotismo americano se dava de cara com uma conspiração liderada por ninguém menos que o próprio presidente. A velha trama de espionagem da “célula sombria” do governo desta vez envolvia o comandante em chefe como seu líder.
O arco seguinte do personagem, Nomad, começava com o Capitão América dizendo que se os EUA eram aquilo, ele não era mais o Capitão América. Seria outra coisa: um Nômade, um homem sem nação, viajando pelo país tentando entender, afinal, o que eram os EUA? Enquanto Tony Stark se encaminhava para lidar com o Alcoolismo, Steve Rogers tentava entender que país era esse que ele jurou defender.
Esse mesmo período viu o surgimento dos anti-heróis como Vigilante e Justiceiro, este último tão amado pelos mesmos que pedem por quadrinhos “sem influência política”. Juntamente com o vilão Flagelo do Submundo, eram críticas ao vigilantismo e a noção de “cidadãos de bem” como fonte de lei e ordem. A mensagem passou direto pela cabeça de muitos leitores.
Encerrando com a “idade das trevas”
Eu poderia me alongar até os tempos modernos, mas a chamada “idade das trevas” dos quadrinhos, deflagrada com a díade Watchmen e The Dark Knight Returns, serve bem para concluir meu ponto sobre como quadrinhos jamais foram apoliticos. Publicadas pela DC Comics, as duas histórias não tem nada de “neutras” e “desprovidas de ideologia”.
Mais do que uma desconstrução do vigilantismo, Watchmen, ao fim das contas, é um longo debate sobre a futilidade de duas escolas de pensamento político: o utilitarismo e o objetivismo. Embora Alan Moore não faça a defesa de um “pensamento ideal”, sua condenação dessas duas vertentes, personificadas em Ozymandias e Rorschach é clara. Não importa se o massacre cometido por Ozymandias trouxer ou não a paz mundial, nada o justifica - mas ao mesmo tempo, não há uma resposta objetivamente correta para seu crime: qualquer curso de ação centrado em uma ideia de “certo e errado” absoluta é impossível.
Mais do que uma desconstrução do vigilantismo, Watchmen, ao fim das contas, é um longo debate sobre a futilidade de duas escolas de pensamento político: o utilitarismo e o objetivismo. Embora Alan Moore não faça a defesa de um “pensamento ideal”, sua condenação dessas duas vertentes, personificadas em Ozymandias e Rorschach é clara. Não importa se o massacre cometido por Ozymandias trouxer ou não a paz mundial, nada o justifica - mas ao mesmo tempo, não há uma resposta objetivamente correta para seu crime: qualquer curso de ação centrado em uma ideia de “certo e errado” absoluta é impossível.
Do outro lado do espectro político, The Dark Knight Returns é uma ode ao “cidadão soberano”. Na visão distópica de Frank Miller, o governo, os órgãos públicos e as corporações são todas corruptas e decadentes. Em um mundo tomado pelo caos, resta a um “grande homem” tomar as rédeas da sociedade e mostrar como se faz. Batman é a única esperança de um mundo que “se perdeu”. O Super Homem, por sua vez, é um simbolo da corrupção e da decadência por sua aderência a “leis” e “moral”, aqui pintadas como subserviência ao governo.
Juntamente com as Graphic Novels que codificaram essa mudança de paradigma, as histórias de super heróis estavam no auge de sua politização. Tony Stark, como o herói randiano que é, encarou o governo na “Guerra das Armaduras”. Steve Rogers fez um discurso contra a homofobia quando o termo “homossexual” era tabu, e em uma história hipotética, afirmou que a América por si só não valia nada. Pouco depois abandonou o título, deixando em seu lugar o “apolítico” e reacionário John Walker. O Super Homem lidava com as consequências morais do ato de matar, e Batman lidava com sua responsabilidade pelas que dragava pela lama em sua “cruzada”. E sutilmente, personagens diversos eram adicionados aos quadrinhos.
Dois roteiristas se destacaram pela subversão neste período. Chris Claremont, escrevendo X-Men desde 1975, em 1980 praticamente centrou a revista em uma adolescente judia, e a usou como um mouthpiece para discutir racismo, intolerância e xenofobia. Na Distinta Concorrência, Grant Morrison usou a oportunidade de reviver Animal Man para tratar de vegetarianismo, direitos dos animais e abusos na indústria médica. Ao fim de sua fase de Animal Man, Morrison assumiu Doom Patrol, título no qual subverteu a própria forma do quadrinho, como já havia feito em Animal Man.
Cyber Force: um dentre tantos grupos cheios de armas em missões escusas. |
Os anos 90 viram o ocaso desse discurso subversivo e dessa discussão filosófica. Movidos pelo ânimo da “vitória” americana na Guerra Fria, os “novos” heróis seguiam a mesma lógica dos filmes de ação da década anterior, inspirados no discurso militarista de "mãos limpas" do governo Reagan. Grande parte dos ‘heróis’ da Image Comics eram “agentes do governo” ou "mercenários" em “missões secretas”, em geral com grandes doses de violência. Outros eram “experimentos secretos”. Um dos mais longevos, Spawn, era um agente secreto que vendia sua alma para um demônio para retornar a vida.
Se antes o discurso tratava das questões sociais e do lugar dos EUA em um mundo que perigava abandonar a bipolaridade da Guerra Fria, agora o discurso era uma defesa exaltada do imperialismo americano, centrada na ideia de que cabia aos heróis (leia, aos EUA) eliminar ameaças a ordem vigente. Quando órgãos governamentais eram colocados como os vilões, via de regra eram parte de algum “gabinete sombrio” que deveria ser eliminado para restaurar a ordem nacional (a base de balas).
Cada um desses aspectos veio a ser desconstruído na era moderna dos quadrinhos. Em particular, o “anti-herói dos anos 90” foi brutalmente desconstruído por Warren Ellis em The Authority, mostrando esse tipo de personagem pelo que ele é: um vilão que se crê heroico. A recusa de leitores em verem aquilo que Ellis dizia explicitamente, que quem se coloca na posição de juri, juiz e executor, e se sente no direito de derrubar governos nacionais sem pestanejar não é um herói, foi por sua vez desmontada em What's So Funny About Truth, Justice & the American Way?, de Joe Kelly. Novamente, é um discurso político: o de que mentalidades como a do então vigente governo Bush são o tipo de coisa que um supervilão faria.
Além de ser uma defesa contumaz do Super Homem |
Enfim...
A “era moderna” dos quadrinhos de Super Heróis é repleta de discursos políticos, não só na tão detestada inclusão de minorias. Algumas das melhores obras do gênero são manifestos politizados sobre uma causa, uma ideia ou um problema social. Minha história favorita do Super Homem, Paz na Terra, é descaradamente um líbelo sobre a impotência do cidadão interessado quanto a fome em zonas de conflito, e a falta de vergonha quanto a isso é o que a torna forte.
Em ponto algum os quadrinhos de super heróis (ou qualquer outra forma de mídia) foram “apolíticos” ou “isentos de ideologia”. Em alguns pontos da história, especialmente nos anos 50, a posição política dos roteiros do gênero fora ignorar o mundo real. Essa opção deliberada pela alienação e o conformismo é tão política quanto quando Dennis O’Neill e Neal Adams colocaram um esquerdista e agitador político para bater boca com um conservador nas páginas do Lanterna Verde.
Seja optando por repetir o que o status quo quer, seja transgredindo a ordem social, o gênero sempre foi politizado. Criticar a politização das histórias de super heróis agora que minorias passam a ter o primeiro plano é ridículo. Alegar que antes não tinha política nos quadrinhos de super heróis é ser desonesto. Mas há algo mais forte por trás dessa revolta: a mentalidade de que aquilo que “eu concordo” é “natural” e “sem ideologia”; ideológico e político é o que os outros pensam. Especialmente aquilo que “vai contra o que eu penso”.
*ano passado,o comentarista da Fox News Tucker Carlson perguntou porque o personagem não podia voltar ao tempo “apolítico” em que ele socava Hitler na cara. Sua revolta era com o novo Capitão, Sam Wilson, enfrentar uma alegoria para a KKK.
** este admitido e fartamente documentado por William Moulton Marston
*** Legalmente, a MAD era a EC, mudando de formato e focando em uma única publicação. Efetivamente, a Entertaining Comics deixava de existir.
**** Anos mais tarde, muitos dos vilões comunistas da Marvel seriam repensados como “heróis da união soviética”, seus atos vilanescos movidos a disputas políticas e mal entendidos.
Belo texto, todos leitores da marvel e dc deveriam ler
ResponderExcluirÓtimo texto! Gostaria que todos que se consideram fãs de quadrinhos o lessem.
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