Algumas vezes, é preciso ignorar os lançamentos e olhar para o passado em busca de “pequenos grandes filmes”. Obras ignoradas no seu tempo, por não terem aquele apelo hollywoodiano, carecerem de grandes nomes no elenco, ou serem esquecidos devido a similares que “venderam melhor”. Talvez Cidade das Sombras (Dark City, EUA, 1998) se encaixe em todos os três casos.
Fruto de um diretor pouco conhecido (Alex Proyas, que depois dirigiu os fracassados “Eu, Robô” e “Presságio”), com atores de pequeno destaque, (excluindo Jennifer Connelly, e nos tempos pós 24 Horas, Kiefer Sutherland) e injustamente acusado de ser uma cópia de Matrix, Dark City fracassou no lançamento. Hoje, é mais um filme Cult – mas que é desconhecido pelo público em geral. Não é de grande ajuda o fato de que tanto o título em português quanto o título original já foram utilizados outras vezes.
“Nossas memórias determinam quem somos?” é a grande pergunta que norteia a trama surreal e claramente inspirada no cinema noir. J. Murdoch (Rufus Sewell, quase sempre um coadjuvante) acorda desorientado em uma banheira de hotel, sem lembrança de quem é ou de onde veio, salvo lembranças vagas de um lugar chamado Shell Beach e da traição da esposa, Emma (Connelly). No quarto, uma prostituta morta. E em seu encalço, uma equipe de detetives liderada por Frank Bumstead (William Hurt).
Até aí, o roteiro parece apenas um mistério policial, mas essa história é um dos pormenores do filme. É sempre noite na cidade sem nome, sem fim e sem sono de Murdoch. Ruas e prédios mudam a cada meia-noite, junto com memórias, nomes e personalidades. Tudo sob o controle dos misteriosos “estranhos” responsáveis pelo vasto experimento social que é a cidade, com a ajuda involuntária do psiquiatra Daniel Schreber (Kiefer Sutherland).
Dark City é um caso pouco usual: uma história com um “narrador” (ou melhor, um personagem de ponto de vista) cuja percepção é plenamente confiável, mas que ainda assim resulta em uma narrativa altamente dúbia. Afinal, o quão confiável é a história de um homem quando o mundo todo muda ao seu redor, e apenas ele lembra daquilo que o antecedeu? A ideia de que todas as suas lembranças e sua noção de mundo possam ser fabricadas é aterradora. Afinal, como saber o que é real? Como ter certeza do que ocorreu “ontem”, quando a própria ideia de “ontem” pode ser uma mentira?
O destaque na atuação vai para Sutherland – a fala pausada, quase ofegante, indicativa de alguém “com algo a esconder” e que não quer mais guardar segredo diz tudo sobre o personagem. Outra atuação forte – e perturbadora – é Richard O’Brien como um dos estranhos, Mr. Hand, implantado com as memórias que Murdoch deveria ter.
A estética inspirada pelo expressionismo alemão só reforça o ar opressor da “cidade”. O velho cinema também dá as caras no visual dos "estranhos", praticamente uma raça inteira de Orloks (da obra máxima do estilo, Nosferatu). Não é sem motivo que Dark City foi acusado de imitar Matrix – ironicamente, vendo que o filme antecede o clássico dos Wachowski.
Os efeitos visuais são um espetáculo a parte. Desde os pequenos detalhes da "sintonização" de Murdoch com a "cidade", até a belíssima - e aterradora - cena de "reconstrução" da cidade, coisa nunca vista antes no cinema (E que gera uma cena de morte também sem precedentes). De certa maneira, o envelhecimento dos mesmos apenas os torna melhores: a qualidade mais baixa dos efeitos de 1998 lhes dá um aspecto “falso-mas-nem-tanto” e alucinógeno que talvez fosse perdido em algo mais bem produzido. Um misto de sonho e pesadelo marcado por pequenos sinais de falsidade.
Cidade das Sombras está disponível em DVD, e vale cada minuto. Porém é um filme denso e surreal, e o ar opressor pode não agradar a todos. Sei de muita gente que não iria gostar do filme... e muita gente que iria adorar, se ao menos desse uma chance.
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